terça-feira, 24 de agosto de 2010

A memória que tentaram apagar


No dia 24 de agosto de 1954, a 56 anos atrás, as ruas das cidades estavam cheias de uma multidão atônita, em pânico, em lágrimas.

O estampido do pequeno revólver que disparara a bala fatal no coração de Getúlio Vargas ecoava como se fosse um poderosíssimo canhão, um grunhido de dor que enchia os subúrbios da cidade, tomava corpo e, em pernas, em caminhões, em trens e em ônibus, começava fluir, em ondas, para as praças.

E a dor e a raiva, tão sempre companheiras, se misturaram numa comoção coletiva e em atos de inconformismo, queimando os jornais que detratavam o velho, empresas estrangeiras. O então jovem gaúcho Paulo José, o grande ator, conta que a multidão, em Porto Alegre, saiu “depredando tudo que tivesse nome americano: o Consulado, as Lojas Americanas, até a American Boite…”

Nem eu nem você vivemos estas cenas. Elas e perderam no tempo e sobrevivem apenas em velhos e riscados filmes em preto e branco, como o que reproduzo aí em cima, com uma regravação, por Zé Ramalho, do genial “Ele disse”, composto por Jackson do Pandeiro sobre a carta testamento de Getúlio ainda ali, no terremoto da tragédia.

Mas será que é mesmo assim? Será que como as velhas fotos de família que parecem nos retratar como já não somos mais, na aparência, não se guardam ali as raízes do que fomos e somos e que irrigam nossos sonhos e desejos.

O Vargas dos direitos trabalhistas, do petróleo, da exploração soberana dos nossos recursos naturais, dos bairros operários, dos Iapis, que entoava o seu “trabalhadores do Brasil” ao discursar, para mostrar que falava ao povo, essencialmente, e não às elites deste país é uma destas raízes.

Formou-se e tomou corpo absorvendo a seiva das lutas sociais da primeira metade do século 20 e cresceu em direção à luz do sonho de uma soberania nacional, um desenvolvimento autônomo que, como o sol, não importa que o quão longe esteja, nos alimenta com sua força vital.

Ah, quantos machados e quantas serras tentaram cortar esta raiz. A ditadura e seus porões e seus exílios. Depois, os professores de finos modos e feroz crueldade, como Fernando Henrique e, como ele, outros tantos que, filhos de Vargas, desejaram tomar daquele pequeno revólver e disparar não contra seu peito, mas contra o que dentro dele havia: o desejo de um Brasil soberano, livre, forte, dono de suas riquezas e habitado por uma gente que reunia todas as diferenças de pele, voz, secas, águas, campos, praias, frios calores, mas que se igualava naquela expressão que os chamava à consciência de que éramos um povo e um povo valoroso:

“Trabalhadores do Brasil”.

Se Vargas estava morto,o que mais queriam matar?

Era isso, meus amigos, era isso.

Os que vieram de Vargas, na primeira geração, Jango e Brizola, receberam um anátema. Eram malditos. Foi preciso bani-los, para o exílio, para a morte ou para o desterro político do “ultrapassado, populista, demagogo”. Não houve poucos, que, com a arrogância dos que acham que, antes deles, nada havia, repetiram o que vinha das vozes oficiais, fixando seus olhos nas origens e nos defeitos dos homens, sem serem capazes de entender que ali não estavam apenas homens de carne e osso, mas personagens da história.

Mas o processo social é caprichoso. Ao tomar posse, depois de uma estrondosa eleição popular, Getúlio saudou o povo trabalhador dizendo: “Hoje, estais com o Governo, amanhã, sereis Governo”.

Pois não é que um operário de carne e osso – bem verdade que, por tempos, tutelado como ícone por um grupo de intelectuais onde não faltavam os elitistas, que torcia o nariz ao nome de Getúlio, chegou ao Governo. Lá, lá, ao seu jeito e nas suas circunstâncias, entendeu o que foi o velho, ao ponto de repetir seu gesto sujando a mão de petróleo, de praticar uma política de valorização do salário-mínimo que e muito mais forte do que aquele discurso de “conquista da categoria organizada” e de entender que modernização do país e crescimento econômico só podem existir, de verdade, quando há ascensão do nosso povão.

Em um artigo que li, do professor Emir Sader, ele pergunta:

- Como isso foi possível, depois de 21 anos de ditadura militar e de mais de uma década de governos neoliberais? Qual o fio condutor que articula o movimento popular brasileiro desde suas origens contemporâneas, na Revolução de 30, passando por estas oito décadas de acontecimentos tão significativos – progressivos e regressivos – até chegar ao complexo período que vivemos?

Foi, professor, o fio da História, aquele que é tecido por gente e por fatos, por sonhos, por conquistas e derrotas, em que cada ponto se apóia e firma no ponto anterior, e no anterior, e no anterior,até estarmos todos seguindo uma linha que podemos nem mesmo saber onde começa, mas que serpenteia inexoravelmente em uma direção, como um rio procura o mar.

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