quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Dias para abalar o mundo


O movimento contra Mubarak toma proporções de revolução e muda os rumos do Oriente Médio

A escalada do movimento contra o regime de Hosni Mubarak cresceu das proporções de uma manifestação nacional de protesto, no “dia de fúria” de 25 de janeiro, para a de uma autêntica revolução, a partir da sexta-feira 28 – mesmo se ainda está em aberto se ela será vitoriosa e no que isso resultará.

O momento crucial, a “Queda da Bastilha”, foi quando a multidão saiu das mesquitas (e, em menor quantidade, das igrejas coptas) do Cairo, convergiu para a ponte Kasr al-Nil e tomou-a aos policiais que a defendiam com gás lacrimogêneo, jatos d’água e cassetetes, obrigando-os a recuar e deixar o povo ocupar a Meydan Tahrir (Praça da Libertação). Quartéis da polícia foram incendiados, primeiro em Suez, depois em outras grandes cidades.

O medo da repressão foi vencido e a mobilização explodiu. O anúncio do Exército de que não atiraria nos manifestantes ajudou-a a culminar na “marcha dos milhões” de 1º de fevereiro, que fez jus ao nome. Segundo a Al-Jazira, 2 milhões de fato saíram às ruas no Cairo, meio milhão em Alexandria e números proporcionalmente impressionantes em outras grandes cidades, de Damieta, extremo norte, a Assuã, no sul. No Sinai, os beduínos expulsaram as forças da repressão, tomaram cidades na fronteira de Gaza e ameaçaram atacar o Canal de Suez. Com anuência de Israel, o Egito enviou tropas para controlar a região, desmilitarizada desde o tratado de paz de 1979.

Na hora zero da sexta-feira, o governo egípcio cortou completamente a internet, medida sem precedentes no mundo. Nos momentos mais críticos, inclusive o 1º de fevereiro, tirou do ar também a telefonia celular e os principais satélites de comunicações. Levou demasiado a sério a “revolução pelo Twitter” alardeada pela mídia ocidental. O blecaute digital paralisou os bancos e a economia – até cartões de crédito e caixas automáticos deixaram de funcionar –, mas não afetou os protestos, não cortou a cobertura jornalística e prejudicou a imagem do regime. Assim como outras medidas mais convencionais: toque de recolher, cassação da licença da Al-Jazira e perseguição a jornalistas.

A mais perigosa foi retirar a polícia das ruas, a partir da derrota da sexta-feira. Se o regime esperava causar caos e pânico e levar a população a recolher-se e implorar pela restauração da ordem, o tiro saiu pela culatra. Depois dos primeiros saques, dos quais parecem ter participado agentes provocadores, o povo organizou comitês, armou-se de paus e facas, ergueu barricadas e fez cordões humanos para proteger suas casas e seus tesouros nacionais, inclusive o Museu Nacional (onde peças foram danificadas), a Biblioteca de Alexandria e o Vale dos Reis. Mostrou ao governo que pode dispensá-lo.

Aparentemente, houve desentendimentos entre o governo, o aparelho repressivo e os diferentes ramos das Forças Armadas, bem como entre Mubarak e seus aliados nos EUA, Europa e Israel. Correram boatos de que o Exército desacatou ordens de disparar nos manifestantes. Soldados e oficiais foram vistos confraternizando com populares e dizendo estar a seu lado.

O secretário-geral do governista Partido Nacional Democrático (pateticamente expulso, em 1º de fevereiro, da Internacional Socialista), o poderoso empresário siderúrgico Ahmed Ezz, foi destituído, enquanto seus escritórios e indústrias eram saqueados. Já o baixo clero dos políticos e empresários governistas pareceu mais agarrado ao poder que o próprio ditador, acusando os manifestantes de serem desordeiros, fundamentalistas ou espiões de Israel.

Em 25 de janeiro, Hillary Clinton dizia que “o governo egípcio é estável e procura meios de responder aos interesses legítimos do seu povo”, mas, depois da sexta-feira, o discurso mudou. A Casa Branca pressionou Mubarak, que, no sábado, trocou o primeiro-ministro Ahmed Nazif (tecnocrata neoliberal identificado com a plutocracia e com uma política econômica impopular) pelo ministro da Aeronáutica e marechal-do-ar Ahmed Shafik. Nomeou o diretor de inteligência Omar Suleiman para a Vice-Presidência, vaga há 29 anos, sinalizando que Gamal Mubarak, filho de Hosni, até então tido como sucessor, foi deserdado – um golpe nos políticos do PND em proveito dos militares.

A reforma do gabinete não satisfez os manifestantes e a aliança de oposições (partidos laicos, Fraternidade Muçulmana, sindicatos, estudantes) liderada pelo recém-retornado Mohamed El-Baradei, que continuaram a exigir a renúncia de Hosni. No domingo, o presidente Barack Obama, depois de telefonar aos líderes de Israel, Arábia Saudita, Turquia e Reino Unido, cobrou publicamente o fim da repressão e uma “transição ordeira”, pouco depois que Hillary Clinton havia dito que as medidas da véspera não bastavam, eram “mero começo”.

A Casa Branca não conseguiu agradar nem a gregos nem a troianos. A oposição egípcia não se satisfez e conservadores dos EUA e de Israel condenaram a “traição” de Obama ao velho ditador, que sinalizaria a outros autocratas do Oriente Médio que não podiam confiar no apoio estadunidense. Eytan Gilboa, cientista político israelense entrevistado pelo site Ynet, disse que Obama “já virou as costas a Israel uma vez, apunhalou Mubarak pelas costas e é hora de desenvolver relações com novas potências”, Índia e China – como se fosse concebível criar lobbies sionistas em Nova Délhi e Pequim.

No Reino Unido, enquanto o primeiro-ministro conservador David Cameron pareceu afinado com a Casa Branca ao pedir “transição ordeira”, Tony Blair defendeu Mubarak, chamando-o de “imensamente corajoso, uma força para o bem”, e advertindo contra “o que poderia emergir de eleições apressadas”. No mundo árabe, Mahmoud Abbas e o rei saudita, Abdullah, também ofereceram seu apoio ao ditador cambaleante.

Outros entenderam melhor: o líder do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, no poder há 32 anos, anunciou reformas e prometeu não se recandidatar, enquanto na Jordânia o rei Abdullah II demitia o primeiro-ministro. Mas o próprio Mubarak resistiu a mais concessões até o dia da “marcha do milhão”, durante o qual os EUA enviaram um emissário especial para repetir o recado. Só ao fim dessa noite reapareceu na tevê para avisar que não voltaria a se candidatar, mas permaneceria no cargo até as eleições gerais em setembro.

O anúncio satisfez, segundo jornalistas, alguns manifestantes, ansiosos por voltar à vida normal, mas não às principais forças de oposição, incluindo El-Baradei e a Fraternidade Islâmica. E o governo, ou parte dele, reagiu violentamente. Em 2 de fevereiro, violentos militantes pró-Mubarak irromperam na Praça Tahrir sem ser detidos ou incomodados pelo Exército, enfrentaram com cavalos, camelos, chicotes, navalhas, pedras e coquetéis molotov os manifestantes da oposição e espancaram e prenderam jornalistas. Parte deles era de policiais à paisana ou membros do PND – 120 foram capturados por populares, que exibiram a jornalistas suas identificações – outros seriam populares pagos por empresários governistas, a 200 libras egípcias por cabeça (34 dólares), principalmente entre guias turísticos das pirâmides, que as manifestações deixaram sem trabalho.

Tática desastrosa: uniu a oposição em vias de se dispersar e dividiu o governo. O papel da Fraternidade Islâmica visivelmente cresceu. O primeiro-ministro Shafik ameaçou renunciar e fez um pedido de desculpas em público, EUA e Europa se pronunciaram condenando a prisão de jornalistas e pedindo transição “rápida”: não dá mais para esperar até setembro.

A lógica dos EUA é clara: quanto mais Mubarak resistir, mais antiocidental será o regime que o suceder. Mas o tipo de transição que os EUA gostariam de garantir já não é um sonho? Mais de uma vez, um ditador longamente apoiado por Washington e derrubado por um movimento popular foi sucedido por um regime democrático amigável para com o Ocidente – por exemplo, a queda de Ferdinand Marcos, em 1986, e de Mohamed Suharto, em 1998. Mas, neste caso, é improvável que qualquer governo democraticamente eleito seja tão dócil aos EUA e a Israel quanto Mubarak. E não é impossível que seja hostil.

No Irã, a insurreição do Egito recebeu apoio tanto do governo conservador de Mahmoud Ahmadinejad quanto de Mir-Hossein Mousavi, o principal líder da oposição tida (indevidamente) como liberal. Os primeiros veem no movimento do Cairo uma repetição da revolução islâmica do Irã de 1979 e, os segundos, da “onda verde” do Irã de 2009. Nos EUA e em Israel, uma divergência similar de interpretação opõe conservadores e liberais, ainda que os primeiros, ao contrário de seus similares iranianos, considerem aterradora a perspectiva.

Qual análise é a mais realista? Em favor dos liberais, diga-se que as manifestações foram iniciadas por estudantes aparentemente laicos, que não se ouvem palavras de ordem fundamentalistas nos protestos contra Mubarak, que neles participam tanto muçulmanos quanto cristãos coptas e que os líderes da Fraternidade Islâmica têm sido cautelosos. Só apoiaram os protestos depois de iniciados e têm participado da coalizão da oposição liderada pelo líder laico Mohamed El-Baradei sem parecer pretender um papel dominante.

Há muito “parece” nesse parágrafo, e não sem razão. O olhar dos observadores ocidentais, principalmente os jornalistas, tende a dar um peso desproporcional a líderes, intelectuais, blogueiros e tuiteiros que sabem se expressar em inglês – que frequentemente são oposicionistas sinceros e até radicais, mas tendem a ser mais ocidentalizados e liberais que as massas e não necessariamente representam seu sentimento.

Sob a superfície, outras correntes podem ser mais poderosas. Uma pesquisa da Pew Research (instituição presidida por Madeleine Albright, ex-secretária de Estado de Bill Clinton), conduzida em maio de 2010 e publicada em dezembro do mesmo ano em sete países islâmicos, mostrou que a maioria dos muçulmanos egípcios tende ao islamismo político.

Os egípcios estão divididos 48% a 49% entre os que consideram o atual papel do Islã na política grande ou pequeno. Dos 48% que o julgam já “grande”, 95% acham isso bom. Dos que acham pequeno, 80% não estão satisfeitos com o quadro. Noves fora, 85% consideram positiva a influência do Islã na política – bem mais do que, por exemplo, no Paquistão (68%), Líbano (58%) ou Turquia (38%) – e só 2% a julgam ruim, menos que em qualquer outro país pesquisado, o que inclui Indonésia, Nigéria e Jordânia. Nada menos de 82% apoiam a punição do adultério com apedrejamento, 77% a punição do roubo com açoite ou amputação de mãos, 84% a pena de morte para a apostasia e 54% a segregação de homens e mulheres no local de trabalho, porcentagens sempre em primeiro ou segundo lugar entre os países pesquisados.

São 59% os que preferem a democracia a qualquer outro tipo de governo – uma maioria, mas inferior à de outros países, exceto Paquistão. Só 20% aplaudem a Al-Qae-da e 19% o Hezbollah, mas 49% simpatizam com o Hamas, que historicamente surgiu da Fraternidade Islâmica, a qual venceu pelo menos metade das eleições das quais Mubarak permitiu que participasse.

Os egípcios parecem tender a uma democracia islâmica e não liberal, e vale lembrar que, com todas as limitações, o Irã tem eleições mais reais que o Egito ou qualquer país árabe, exceto o Líbano. As semelhanças com o Irã também incluem a presença de uma considerável mão de obra feminina, de um movimento trabalhista significativo (e em boa parte islâmico, ainda que moderado) e uma forte identidade nacional.

Por outro lado, o Egito difere do Irã por uma minoria não muçulmana grande e influente: os coptas representam pelo menos 10% da população, com uma representação mais que proporcional nas classes média e alta, inclusive os artesãos e comerciantes do “bazar”, cuja hostilidade à modernização e à concorrência do capital ocidental foi decisiva em Teerã. No Egito, essa camada é mais ocidentalizada e dependente do turismo.

O islamismo sunita, predominante no Egito, não é necessariamente mais moderado que o xiita do Irã – Osama bin Laden e o Taleban que o digam –, mas é mais plural e menos hierarquizado, o que dificulta a estruturação de um regime teocrático. Mas que não haja um “aiatolá Khomeini” é uma meia-verdade: embora não tenha autoridade formal sobre o Islã ou a Fraternidade Islâmica, o teólogo egípcio Yusuf al-Qaradawi, exilado no Catar desde 1961, foi em 2008 classificado pela revista Foreign Policy como o terceiro intelectual mais influente no mundo. Não é o único líder religioso relevante, mas sua voz se fez ouvir sobre a dos demais, ao condenar o regime Mubarak e declarar haram (religiosamente proibida) a repressão aos manifestantes. Tem uma audiência de 40 milhões na Al-Jazira, é hostil a Israel e foi proibido de pisar nos EUA e no Reino Unido por elogiar o “martírio” dos homens-bomba palestinos.

Não que seja o único: para a diplomacia e a inteligência de Israel, só o “círculo interno” de Mubarak está comprometido com a paz. Não confiam em El-Baradei, visto pela imprensa ocidental como a esperança laica e democrática. Sua gestão na Agência Internacional de Energia Atômica, de 1997 a 2009, lhe rendeu o Nobel da Paz de 2005, mas também uma série de atritos com o Estado judeu, que culminou em 2007, quando acusou Tel-Aviv de violar a lei internacional ao bombardear as instalações nucleares da Síria e Ehud Olmert pediu sua demissão. El-Baradei também atacou a invasão do Iraque, criticou os exageros do Ocidente quanto à suposta ameaça nuclear do Irã e os diferentes pesos e medidas aplicados a Israel, que se recusa a aderir ao tratado de não proliferação, e que ele apontou como a maior ameaça à paz no Oriente Médio.

Mesmo que o resultado não seja uma teocracia nem uma declaração de guerra a Israel, a queda de Mubarak – se for mais que a farsa de uma substituição por um Suleiman ou Shafik – mudará a face da região. Depois de romper com a Turquia, Israel perderá seu último apoio na região, ficando mais isolado do que nunca. Seus navios e submarinos não mais poderão passar por Suez e o gás natural deixará de ser fornecido a preços camaradas. Pode ser também o fim definitivo das negociações por um Estado palestino independente, deixando Israel à deriva, em uma rota suicida.

Fonte: Carta Capital

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