Informações, curiosidades, comentários, pontos-de vista... Este é o nosso blog, vamos fazer ouvir a voz da minoria que não se resigna; a "minoria" ruidosa!
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
O visitante que veio da Pérsia
Postado originalmente em Boca no Trobone 2
Por Mauro Santayana, no Jornal do Brasil
A movimentação diplomática do Brasil, tendo à frente a personalidade peculiar de seu atual chefe de Estado, vem sendo criticada pela oposição e meios de comunicação, e de forma ainda mais contundente, quando se dispôs a receber o presidente do Irã. Houve passeatas, muito bem organizadas, com dísticos e faixas caras, contra o visitante. Não houve os mesmos protestos quando o presidente recebeu, há poucos dias, o presidente de Israel.
O presidente do Irã é alvo da ira geral do Ocidente porque, em seu confronto com Israel – única potência nuclear do Oriente Médio – nega o Holocausto. Ele se inclui entre os revisionistas, alguns alemães, outros ingleses, outros ainda da hierarquia da Igreja, que também negam a existência dos campos de extermínio, ou tentam diminuir o número de mortos, judeus e não judeus, nos campos de concentração. Os judeus, os comunistas, os ciganos e os eslavos foram as vítimas preferenciais dos nazistas, dizimados pelo trabalho forçado, pela fome e pelo gás.
Há farta documentação do que ocorreu entre 20 de janeiro de 1942, quando os nazistas decidiram, no encontro de Wannsee, programar a “solução final” para o problema judaico, e 17 de janeiro de 1945, quando os soviéticos ocuparam o campo de Auschwitz. Nos três anos, milhões de seres humanos foram chacinados pelos nazistas. O presidente Ahmadinejad sabe disso, mas, em sua luta contra Israel, nega-se a aceitar a História. Se foram 6 milhões, 600 mil, ou 60 mil, o crime é o mesmo. Não é o número de vítimas que nos deve espantar, e sim a presunção de superioridade racial de que se arrogavam os alemães para a prática do genocídio.
O mesmo sentimento de horror que nos leva ao confrangimento da alma, diante do que fizeram os alemães, nos atinge, quando assistimos ao que se passa na Palestina. Não há, diante das tragédias de nosso tempo, bons culpados e vítimas más. Há culpados e há vítimas. A maior oposição que se faz ao Estado de Israel, e com razões históricas, é o fato de que os palestinos tenham sido privados de sua terra, privados de água, submetidos ao bloqueio de comida e de remédios, além de cercados pelo muro e bombardeados. Os palestinos nunca fizeram progroms, como os eslavos, jamais mandaram queimar judeus – como os cristãos, em Basileia, e em outros lugares. Não os submeteram aos autos de fé, como os ibéricos, durante a Inquisição. Não os eliminaram nos campos poloneses. Não lhes cabe purgar os crimes do antissemitismo, quando eles também são semitas, tanto quanto os que lhes ocupam o solo.
Estabeleceu-se, pela força do convencimento dos meios mundiais de comunicação, que os palestinos são terroristas, e os israelenses, democratas. Não nos incluímos entre os que admiram o presidente do Irã. Algumas de suas declarações espantam pela falta de senso. Mas não lhe falta bom senso quando defende o direito de o Irã desenvolver pesquisas nucleares. Se os iranianos são ameaça a Israel, com seu projeto, os senhores da guerra de Israel, que já dispõem de artefatos nucleares, como orgulhosamente proclamam, e anunciam que irão, são ameaça ainda maior. Nada os faz com mais ou com menos direitos no mundo. Nem a fé religiosa, nem os hábitos cotidianos. A língua persa não é menos importante do que a hebraica, com sua rica literatura. Nem o presidente Ahmadinejad é menos chefe de Estado pelo fato de dispensar o uso da gravata.
O segredo do presidente Lula é a sua percepção de homem comum. Ele acha, e com razão, que uma boa conversa pode resolver os problemas, desde que haja boa-fé entre todos os interlocutores. Disso se deu conta Obama que pediu, pessoalmente, a Lula, durante o encontro do G-8, em Áquila, na Itália, no dia 9 de julho deste ano, que tentasse demover Ahmadinejad de desenvolver armas nucleares – conforme disse, no mesmo dia, à imprensa, o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs. Ao que parece, o New York Times não cobriu o encontro de Áquila.
Os opositores domésticos de Lula se esquecem disso. Os Estados Unidos que admiram não é o de Obama, mas o de Bush e Chenney. É difícil que o presidente consiga, no Oriente Médio, uma paz negada há mais de 60 anos. Mas, se ele conseguir negociações entre as partes envolvidas, mesmo com progressos limitados, será bom para o mundo. Não são todos os judeus de Israel que querem eliminar os palestinos e bombardear Teerã, e nem todos os muçulmanos desejam o fim de Israel. É contando com eles que Lula busca a paz.
Fonte: Vi o Mundo / JB
Que horror! Os pobres estão consumindo!
O Globo publicou hoje, em tom de censura, que as medidas do governo diminuindo os impostos têm aumentado o consumo e fazendo desaparecer os produtos das prateleiras.
Esse jornaleco (e a sua irmã televisiva) não perde tempo e oportunidade de falar mal do governo Lula. Em vez de louvar o empremento na economia e a entrada de diversos estratos sociais no mercado, e criticar a indústria que não promoveu um planejamento adequado, eles reclamam como velhas resmunguentas.
E olha só o que está faltando! Ar condicionado, sorvete, ventilador...
Esses produtos faltariam de qualquer maneira, com ou sem incentivo!
Avisa ao O Globo que está sobrando calor.
Olha só um trecho:
RIO - A combinação de crédito farto e temperaturas elevadas fez com que diversos produtos sumissem das prateleiras. No Rio, já falta de ar-condicionado e ventilador a sorvete e refrigerantes, além de alguns modelos de automóveis. A indústria informa que, em alguns setores, está trabalhando na capacidade máxima e antecipando entregas que só seriam feitas em janeiro.
Esse jornaleco (e a sua irmã televisiva) não perde tempo e oportunidade de falar mal do governo Lula. Em vez de louvar o empremento na economia e a entrada de diversos estratos sociais no mercado, e criticar a indústria que não promoveu um planejamento adequado, eles reclamam como velhas resmunguentas.
E olha só o que está faltando! Ar condicionado, sorvete, ventilador...
Esses produtos faltariam de qualquer maneira, com ou sem incentivo!
Avisa ao O Globo que está sobrando calor.
Olha só um trecho:
RIO - A combinação de crédito farto e temperaturas elevadas fez com que diversos produtos sumissem das prateleiras. No Rio, já falta de ar-condicionado e ventilador a sorvete e refrigerantes, além de alguns modelos de automóveis. A indústria informa que, em alguns setores, está trabalhando na capacidade máxima e antecipando entregas que só seriam feitas em janeiro.
Viva o feijão!!!
Pesquisador conta como a feijoada surgiu na mesa de famílias cariocas
A feijoada não surgiu nas senzalas, como invenção dos escravos, que juntariam sobras de carnes não aproveitadas pelos “senhores” para preparar um prato mais encorpada. Tampouco começou a ser preparada por famílias de poucas posses que requentariam sobras de refeições anteriores para reforçar a alimentação. Ela foi criada para servir como comida para as elites do século 19, especialmente nas famílias cariocas mais ricas. Esta é a tese de um estudo feito pelo pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF), Almir Chaiban El-Kareh sobre o prato que melhor simboliza a culinária nacional.
– Minha teoria é que a feijoada, como a conhecemos, surgiu nas famílias ricas, porque os miúdos eram valorizados pelas elites. Os ricos comiam refeições com feijão incrementado com diversas carnes e miúdos. Os pobres comiam feijão ralo, com pequenos pedaços de carne-seca ou toicinho – afirma Almir.
Almir baseou sua pesquisa em relatos de viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil, em especial o Rio de Janeiro, ao longo do século 19. Um destes viajantes foi o pintor francês Jean-Baptiste Debret.
– Segundo Debret, os escravos comiam a mesma comida que os patrões. Alguns chegavam a comer juntos no mesmo recinto. Os patrões sentados à mesa e os escravos em esteiras no chão. Isso reforço minha tese de que os escravos não preparavam a própria comida – comenta o pesquisador.
Mas antes de cair no gosto das famílias ricas e se tornar o ingrediente principal da feijoadas, o feijão encontrava muita resistência entre as famílias mais ricas do Rio de Janeiro. Pouco depois da transferência da família real e de sua Corte para o Brasil, em 1808, os feijões ainda eram classificados como “comida de pobre”.
Debret
Almir diz que esta informação foi tirada dos relatos de Debret. Segundo o pintor francês, que chegou ao Brasil em 1816, as famílias ricas tinham como prato mais tradicional o cozido português, acompanhado de galinha, arroz e farinha de mandioca.
– O feijão ainda não aparecia na mesa das elites naquele momento – diz Almir, acrescentado que seu consumo era velado. – Debret escreveu que, na época, os pequenos comerciantes comiam feijão com um pedaço de carne-seca e farinha, regado com muita pimenta, mas escondidos de todos, no fundo das lojas.
No entanto, segundo o pesquisador, já por volta de 1830, todos os viajantes que escreveram relatos sobre o Brasil, atestaram que ricos e pobres comiam feijão, carne seca e toicinho todos os dias. Essa aceitação gradual do consumo de feijão pelas elites acabou por sobressair à incorporação dos hábitos europeus e transformou o cozido português numa segunda opção .
O interessante é que a invenção da feijoada e sua incorporação aos hábitos alimentares da população se deu em paralelo à permanência da família real portuguesa no Brasil, nas primeiras duas décadas do século 19.
A etiqueta à mesa foi uma das influências da estada da família real no Rio de Janeiro. As poucos, a sociedade carioca assimilou a etiqueta e as boas maneiras europeias, usando talheres. Porém, só mudou a forma de comer e não o conteúdo – a própria comida. No caso, a feijoada, que foi ganhando cada vez mais espaço na mesa do carioca e do brasileiro.
– A alimentação é o ponto de maiores resistências à mudança porque é um hábitos adquirido na infância. A elite mudou de roupa, copiando a moda francesa, mas não mudou de gosto alimentar. Essa foi a vitória da feijoada.
sábado, 21 de novembro de 2009
Racismo
Carlos Walter Porto Gonçalves
Em 2001, a ONU realizou em Durban, África do Sul, a Conferência Mundial Contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. O local não podia ser mais apropriado, pois aquele país acabava de por fim ao nefando regime de apartheid que lhe havia sido imposto pelos colonizadores. A conferência, infelizmente, terminou com cadeiras voando e sem que os participantes tenham conseguido dar cabo da sua agenda de trabalho. À época, preocupava aos delegados europeus a possibilidade de que fosse aprovada uma resolução que reconhecia a escravidão como crime de lesa-humanidade e, ainda, que pudesse haver alguma condenação a Israel por crime de racismo contra o povo palestino. Em 2009, nos vemos em Bruxelas novamente diante do triste espetáculo de uma reunião da ONU sobre racismo não conseguir dar cabo da sua agenda de debates. Embora a mídia empresarial tenha enfatizado o discurso do Presidente do Irã como tendo sido o responsável pelos desentendimentos, é bom registrar que mesmo antes de qualquer pronunciamento já estava em curso um boicote à conferência protagonizado pelos Estados Unidos, Itália, Alemanha, Holanda, Polônia, Austrália e Nova Zelândia que não enviaram sequer seus embaixadores a Bruxelas.
Independentemente das razões imediatas alegadas por esses representantes de que recusariam o reconhecimento do sionismo como racismo, o que estaria sendo proposto pelo Presidente do Irã, é significativo que seja exatamente sobre o tema do racismo que os embaixadores, especialistas em evitar a guerra, não consigam sequer conversar quando não evitar a pancadaria aberta, como aconteceu em Durban.
O racismo é um dos temas mais entranhados na sociedade moderna e, por isso, um dos mais difíceis de serem tratados com um mínimo de civilidade. As reuniões da ONU comprovam. O racismo está na constituição do sistema mundo desde seus primórdios e continua a constituí-lo ainda hoje. Na América Latina/Abya Yala, no Caribe e na África, não há como deixar de reconhecer o recobrimento entre o processo de formação das classes sociais e a questão étnico-racial. Dois dos mais importantes sociólogos latino-americanos, o peruano Aníbal Quijano e o brasileiro Florestan Fernandes, insistiram nessa sobreposição. Faz parte da colonialidade que constitui a modernidade sendo seu lado até recentemente silenciado. Desde 1492 que a colonização do novo (para os europeus) continente se fez contra os povos originários de Abya Yala, nome com que o movimento desses povos vem designando o continente afirmado como América pela elite criolla, e por meio da escravização de povos africanos nas monoculturas com fins mercantis. Foi nesse momento que os europeus se descobriram como brancos e instauraram um dos mais perversos regimes sociais que a humanidade conheceu, promovendo a morte generalizada de milhões de autóctones tanto na África, como no Caribe e na América/Abya Yala para concentrar riqueza nas mãos de poucos, sobretudo na Europa. A Europa só passou a ter a centralidade geopolítica, geocultural e geoeconômica que hoje possui a partir desse regime social colonial-escravista. Não esqueçamos que até 1492 tomar o rumo certo era se orientar, enfim, ir para o Oriente. Condenar o passado mantendo intactas as posições atuais que por meio dele foram edificadas é contribuir para a manutenção do problema e não para sua solução. È fato que não podemos mudar o passado, como se costuma dizer, mas o que não podemos olvidar é que as desiguais posições de poder atuais foram construídas por essa história que, assim, nos habita na sua contradição.
Foram os próprios europeus que conformaram o holocausto cometendo com requintes técnicos e científicos a morte de milhões de judeus e de ciganos, entre outros povos, nos seus campos de concentração. O horror vivido pelos povos originários de Abya Yala/América e dos negros obrigados a trabalhar sob o látego do feitor depois de viajar nos navios do horror enriqueceram uma burguesia que só quer olhar prá frente porque não pode olhar o passado que lhe constituiu e que se reproduz enquanto pilhagem dos recursos naturais ainda hoje pagando salários de fome, sobretudo aos não-brancos.
O último período da globalização iniciada em 1492, o técnico-científico-informacional (Milton Santos) e neoliberal, ao contrário da homogeneização que de certa forma era seu ideal-tipo tem que aceitar a diversidade de culturas de fato como resultado da resistência dos diferentes à nova colonização, agora em nome do desenvolvimento e do mercado. As migrações acabaram colorindo as periferias de Londres, de Paris, Amsterdã e de Berlin e, assim, aproximaram os diferentes lá mesmo no centro do poder mundial, fenômeno nada novo para quem viveu no lado colonial do sistema mundo moderno-colonial. Há uma resistência xenófoba à transculturalidade e à transterritorialidade em curso no mundo que explicita uma questão de fundo do sistema mundo moderno-colonial e que as reuniões da ONU expressam esse mal-estar. Não será com muros que se vai impedir a invenção de novas territorialidades de que o mundo está grávido. Os equatorianos acusados de indocumentados na Espanha brandiram a carta de Cristóvão Colombo como seu documento de identidade para que pudessem continuar vivendo de seu trabalho na Espanha e, ao mesmo tempo, contribuir para o sustento de suas famílias no Equador. Essa Espanha, que hoje quer expulsá-los, é a mesma que se enriqueceu com exploração das minas de ouro submetendo os quéchuas e os aymaras no seu próprio Tawantinsuyu.
Ainda recentemente, em 16 de Março de 2003, houve uma reunião de cúpula nas Ilhas Açores onde participaram os Estados Unidos, a Inglaterra, a Espanha e Portugal quando se decidiu, à revelia da ONU, pela invasão do Iraque. Tanto o local como seus participantes são emblemáticos para entendermos o significado do que está implicado no sistema mundo moderno-colonial: os Açores são o arquipélago que se tomou como referência para demarcar o Meridiano de Tordesilhas justo no momento em que o Atlântico Norte passava a se constituir no centro geopolítico do sistema mundo moderno-colonial e, ali estavam na reunião de 2003 os que hegemonizaram a primeira moderno-colonialidade – Portugal e Espanha – e, ainda, os que passaram a comandar a segunda moderno-colonialidade – a Inglaterra – e seu desdobramento hegemônico atual, os Estados Unidos. Nunca a geografia e a história foram tão emblemáticas do padrão de poder mundial como nesse encontro dos Açores.
Enfim, vivemos um momento de bifurcação histórica, diria Yllia Prigogine. Há um processo de transformação em que a longa duração, de que tanto nos alertara Fernand Braudel, está se condensando na curta duração pela ação de velhos/atuais protagonistas agora visibilizados no novo quadro histórico que demanda por radicalização democrática. Que a dor dos povos originários de Abya Yala/América, dos negros desterritorializados e escravizados, dos judeus e ciganos confinados em campos de concentração e dos palestinos, hoje massacrados por Israel, nos inspirem na conformação de novas instituições, onde a igualdade e a diferença se combinem no sentido da emancipação das condições de exploração/opressão do sistema mundo moderno-colonial que ainda nos constitui.
*Doutor em Geografia pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Pesquisador do Grupo Hegemonia e Emancipações de Clacso. Ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira
Em 2001, a ONU realizou em Durban, África do Sul, a Conferência Mundial Contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. O local não podia ser mais apropriado, pois aquele país acabava de por fim ao nefando regime de apartheid que lhe havia sido imposto pelos colonizadores. A conferência, infelizmente, terminou com cadeiras voando e sem que os participantes tenham conseguido dar cabo da sua agenda de trabalho. À época, preocupava aos delegados europeus a possibilidade de que fosse aprovada uma resolução que reconhecia a escravidão como crime de lesa-humanidade e, ainda, que pudesse haver alguma condenação a Israel por crime de racismo contra o povo palestino. Em 2009, nos vemos em Bruxelas novamente diante do triste espetáculo de uma reunião da ONU sobre racismo não conseguir dar cabo da sua agenda de debates. Embora a mídia empresarial tenha enfatizado o discurso do Presidente do Irã como tendo sido o responsável pelos desentendimentos, é bom registrar que mesmo antes de qualquer pronunciamento já estava em curso um boicote à conferência protagonizado pelos Estados Unidos, Itália, Alemanha, Holanda, Polônia, Austrália e Nova Zelândia que não enviaram sequer seus embaixadores a Bruxelas.
Independentemente das razões imediatas alegadas por esses representantes de que recusariam o reconhecimento do sionismo como racismo, o que estaria sendo proposto pelo Presidente do Irã, é significativo que seja exatamente sobre o tema do racismo que os embaixadores, especialistas em evitar a guerra, não consigam sequer conversar quando não evitar a pancadaria aberta, como aconteceu em Durban.
O racismo é um dos temas mais entranhados na sociedade moderna e, por isso, um dos mais difíceis de serem tratados com um mínimo de civilidade. As reuniões da ONU comprovam. O racismo está na constituição do sistema mundo desde seus primórdios e continua a constituí-lo ainda hoje. Na América Latina/Abya Yala, no Caribe e na África, não há como deixar de reconhecer o recobrimento entre o processo de formação das classes sociais e a questão étnico-racial. Dois dos mais importantes sociólogos latino-americanos, o peruano Aníbal Quijano e o brasileiro Florestan Fernandes, insistiram nessa sobreposição. Faz parte da colonialidade que constitui a modernidade sendo seu lado até recentemente silenciado. Desde 1492 que a colonização do novo (para os europeus) continente se fez contra os povos originários de Abya Yala, nome com que o movimento desses povos vem designando o continente afirmado como América pela elite criolla, e por meio da escravização de povos africanos nas monoculturas com fins mercantis. Foi nesse momento que os europeus se descobriram como brancos e instauraram um dos mais perversos regimes sociais que a humanidade conheceu, promovendo a morte generalizada de milhões de autóctones tanto na África, como no Caribe e na América/Abya Yala para concentrar riqueza nas mãos de poucos, sobretudo na Europa. A Europa só passou a ter a centralidade geopolítica, geocultural e geoeconômica que hoje possui a partir desse regime social colonial-escravista. Não esqueçamos que até 1492 tomar o rumo certo era se orientar, enfim, ir para o Oriente. Condenar o passado mantendo intactas as posições atuais que por meio dele foram edificadas é contribuir para a manutenção do problema e não para sua solução. È fato que não podemos mudar o passado, como se costuma dizer, mas o que não podemos olvidar é que as desiguais posições de poder atuais foram construídas por essa história que, assim, nos habita na sua contradição.
Foram os próprios europeus que conformaram o holocausto cometendo com requintes técnicos e científicos a morte de milhões de judeus e de ciganos, entre outros povos, nos seus campos de concentração. O horror vivido pelos povos originários de Abya Yala/América e dos negros obrigados a trabalhar sob o látego do feitor depois de viajar nos navios do horror enriqueceram uma burguesia que só quer olhar prá frente porque não pode olhar o passado que lhe constituiu e que se reproduz enquanto pilhagem dos recursos naturais ainda hoje pagando salários de fome, sobretudo aos não-brancos.
O último período da globalização iniciada em 1492, o técnico-científico-informacional (Milton Santos) e neoliberal, ao contrário da homogeneização que de certa forma era seu ideal-tipo tem que aceitar a diversidade de culturas de fato como resultado da resistência dos diferentes à nova colonização, agora em nome do desenvolvimento e do mercado. As migrações acabaram colorindo as periferias de Londres, de Paris, Amsterdã e de Berlin e, assim, aproximaram os diferentes lá mesmo no centro do poder mundial, fenômeno nada novo para quem viveu no lado colonial do sistema mundo moderno-colonial. Há uma resistência xenófoba à transculturalidade e à transterritorialidade em curso no mundo que explicita uma questão de fundo do sistema mundo moderno-colonial e que as reuniões da ONU expressam esse mal-estar. Não será com muros que se vai impedir a invenção de novas territorialidades de que o mundo está grávido. Os equatorianos acusados de indocumentados na Espanha brandiram a carta de Cristóvão Colombo como seu documento de identidade para que pudessem continuar vivendo de seu trabalho na Espanha e, ao mesmo tempo, contribuir para o sustento de suas famílias no Equador. Essa Espanha, que hoje quer expulsá-los, é a mesma que se enriqueceu com exploração das minas de ouro submetendo os quéchuas e os aymaras no seu próprio Tawantinsuyu.
Ainda recentemente, em 16 de Março de 2003, houve uma reunião de cúpula nas Ilhas Açores onde participaram os Estados Unidos, a Inglaterra, a Espanha e Portugal quando se decidiu, à revelia da ONU, pela invasão do Iraque. Tanto o local como seus participantes são emblemáticos para entendermos o significado do que está implicado no sistema mundo moderno-colonial: os Açores são o arquipélago que se tomou como referência para demarcar o Meridiano de Tordesilhas justo no momento em que o Atlântico Norte passava a se constituir no centro geopolítico do sistema mundo moderno-colonial e, ali estavam na reunião de 2003 os que hegemonizaram a primeira moderno-colonialidade – Portugal e Espanha – e, ainda, os que passaram a comandar a segunda moderno-colonialidade – a Inglaterra – e seu desdobramento hegemônico atual, os Estados Unidos. Nunca a geografia e a história foram tão emblemáticas do padrão de poder mundial como nesse encontro dos Açores.
Enfim, vivemos um momento de bifurcação histórica, diria Yllia Prigogine. Há um processo de transformação em que a longa duração, de que tanto nos alertara Fernand Braudel, está se condensando na curta duração pela ação de velhos/atuais protagonistas agora visibilizados no novo quadro histórico que demanda por radicalização democrática. Que a dor dos povos originários de Abya Yala/América, dos negros desterritorializados e escravizados, dos judeus e ciganos confinados em campos de concentração e dos palestinos, hoje massacrados por Israel, nos inspirem na conformação de novas instituições, onde a igualdade e a diferença se combinem no sentido da emancipação das condições de exploração/opressão do sistema mundo moderno-colonial que ainda nos constitui.
*Doutor em Geografia pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Pesquisador do Grupo Hegemonia e Emancipações de Clacso. Ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira
Lula, o filho do Brasil.
128 minutos. Este foi o tempo decorrido entre o nascimento de Luiz Inácio da Silva, em Caetés, subúrbio de Garanhuns, em Pernambuco, e o momento em que é aclamado como a maior liderança sindical do Brasil, em São Bernardo do Campo. 128 minutos cobrindo o período que vai de 1945 até 1980.
Com orçamento de 12 milhões de reais, Lula, o filho do Brasil é o filme mais caro da história do cinema brasileiro e será exibido em quase 400 salas no Brasil, a partir do dia 1º de janeiro de 2010.
O filme de Fábio Barreto, estrelado por Rui Ricardo Diaz, Gloria e Cleo Pires, reproduz na tela grande o mito do herói. Da extrema penúria do sertão pernambucano à periferia do cais do porto de Santos, em viagem de 13 dias e 13 noites em um pau-de-arara, e dessa viagem o nascimento de emblemática liderança operária. A matriarca, dona Lindu, vivida por Glória Pires, pontua a trajetória. Mulher sofrida, abandonada pelo marido, cheia de filhos pequenos, estrangeira na cidade grande. Como viúva de marido vivo, Lindu protege Lula e seus irmãos do mundo e do pai sempre bêbado, o agressivo Aristides. Ela é a âncora, o chão emocional e a única personagem que infunde valores ao filho. É recorrente seu conselho ao filho prenhe de futuro glorioso: "Se você tem que fazer, vá e faça; e se não pode fazer, espere e depois faça"; e também o não menos incisivo chamado à perseverança usando o curioso verbo: "Teime, meu filho. Teime".
Dona Lindu é quem tece os fios do destino. A bem da verdade, o nome do filme deveria ser Lindu, a filha do Brasil.
Fiel ao livro de Denise Paraná, o filme assume cores do épico. Não temos aqui Moisés abrindo o Mar Vermelho nem Jivago, em meio à revolução bolchevique de 1917, vivendo tórrido romance com Lara. Mas temos um Zé Ninguém brotando como xique-xique no sertão nordestino e guiado pelo bordão popular do "deixe a vida me levar, vida leva eu".
Toda pobreza quando bem evocada no cinema já traz um que de trágico – e daí é um pulo para o épico. No caso desse filme não vemos pobreza, encontramos penúria. Os personagens parecem destituídos de tudo. Cada pequeno dia vivido é uma vitória. Se dona Lindu é a heroína, o pai Aristides é o vilão. Vilão agressivo quando presente. E não faltam situações a nos levar ao mundo das emoções mais sentidas: o frangote que se interpõe entre a mãe e o pai quando este ameaça surrá-la; o ainda imberbe adolescente Luiz Inácio recebendo o diploma de torneiro mecânico do Senac; o casamento e o sonho da casa própria; a morte do primeiro filho e da mulher durante o parto; o acidente na metalúrgica que lhe custou o dedo mindinho; a assembléia com milhares de operários lotando o estádio de Vila Euclides e na falta de microfone a forma encontrada para se passar à multidão seu discurso; a liberdade da prisão, por algumas horas, para ir ao cemitério se despedir da mãe.
Rui Ricardo Diaz, o ator que vive Lula dos 18 anos 35 anos, merece todos os aplausos. Sua performance é cativante e, o melhor, é crível. O diretor, se quisesse, poderia se desencaminhar para o estilo lacrimogêneo – afinal, a história de Lula é em si mesma um roteiro, onde não faltam emoção e lágrimas, muitas lágrimas. Mas Fábio Barreto optou por uma obra contida. E acertou em cheio. É que não existe um personagem a ser construído nas telas, e sim uma história a ser contada na tela.
Canção antiga
Outros presidentes populares do Brasil, como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, também tiveram sua história levada às telas. Nos dois casos o aspecto político era predominante. E um detalhe: os filmes foram produzidos após a morte dos personagens-títulos. Ou seja, os arquivos estavam fechados. No caso de Lula, os arquivos estão abertos, muito abertos. Lula, o filho do Brasil está mais para Dois filhos de Francisco, a obra de Breno Silveira que relata a saga dos irmãos Zezé Di Camargo e Luciano, lançado em 2005.
Vale destacar que esta não é a primeira empreitada do cinema de levar Lula para as telas. Não. No entreato temos os peões. As greves e Lula movem o filme Peões, dirigido por Eduardo Coutinho e lançado em 2004. Os depoimentos sobre os movimentos grevistas e sobre as vidas dos operários que participaram deles foram tomados às vésperas da eleição presidencial de 2002; na sua maioria, eles declaram sua paixão por Lula.
Entreatos é Lula. O filme de João Moreira Salles, realizado em um período de 40 dias, principalmente entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2002, acompanha o futuro presidente em suas viagens e reuniões de campanha. Se em Peões já se vê, através de imagens de arquivo, um Lula humano, perspicaz, intuitivo, em Entreatos isto é escancarado. Se em Peões temos um Lula sindicalista, combativo, em Entreatos, também lançado em 2004, o que surge é o político articulado e amadurecido.
Agora chega a cinebiografia de Fábio Barreto lançando luz sobre a vida de Lula e passando pela narrativa linear do nascimento, infância, adolescência, maturidade. Neste sentido podemos considerar os três filmes como momentos de uma mesma personagem, fictícia por englobar vidas diferentes, mas real ao tratar do tema. Em um primeiro ato tem-se o primitivo e alienado, que em um segundo momento se revolta, combate e que por fim articula e é capaz de influir no seu próprio destino.
Se todos estavam alegres, felizes na longa espera para o início da projeção, aos 20 minutos do filme já percebíamos ondas de emoção tomando o imenso salão. E não havia pieguice. O que emocionava não era apenas o alto poder de convencimento de Rui Ricardo como Lula nem de Glória Pires, como Lindu. O que emocionava era ver nas telas o Brasil profundo, aquele país que sofre, no mais das vezes, calado; aquele país que tem bem pouca semelhança com a penitenciária paulista do Carandiru e com o bairro carioca Cidade de Deus. Assistíamos naquele ambiente – que apenas a magia do cinema pode evocar – a vitória dos que já nasciam marcados para o fracasso e a celebração do improvável sobre o provável. E nada disso foi notícia nos jornais.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Battisti
“CARTA ABERTA”
AO EXCELENTÍSSIMO SENHOR
LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA
PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
SUPREMO MAGISTRADO DA NAÇÃO BRASILEIRA
AO POVO BRASILEIRO
*“Trinta anos mudam muitas coisas na vida dos homens, e às vezes fazem uma
vida toda”. (O homem em revolta - Albert Camus)*
Se olharmos um pouco nosso passado a partir de um ponto de vista histórico,
quantos entre nós, podem sinceramente dizer que nunca desejou afirmar a
própria humanidade, de desenvolvê-la em todos os seus aspectos em uma ampla
liberdade. Poucos. Pouquíssimos são os homens e mulheres de minha geração
que não sonharam com um mundo diferente, mais justo.
Entretanto, frequentemente, por pura curiosidade ou circunstâncias, somente
alguns decidiram lançar-se na luta, sacrificando a própria vida.
A minha história pessoal é notoriamente bastante conhecida para voltar de
novo sobre as relações da escolha que me levou à luta armada. Apenas sei que
éramos milhares, e que alguns morreram, outros estão presos, e muito
exilados.
Sabíamos que podia acabar assim. Quantos foram os exemplos de revolução que
faliram e que a história já nos havia revelado? Ainda assim, recomeçamos,
erramos e até perdemos. Não tudo! Os sonhos continuam!
Muitas conquistas sociais que hoje os italianos estão usufruindo foram
conquistadas graças ao sangue derramado por esses companheiros da utopia. Eu
sou fruto desses anos 70, assim como muitos outros aqui no Brasil, inclusive
muitos companheiros que hoje são responsáveis pelos destinos do povo
brasileiro. Eu na verdade não perdi nada, porque não lutei por algo que
podia levar comigo. Mas agora, detido aqui no Brasil não posso aceitar a
humilhação de ser tratado de criminoso comum.
Por isso, frente à surpreendente obstinação de alguns ministros do STF que
não querem ver o que era realmente a Itália dos anos 70, que me negam a
intenção de meus atos; que fecharam os olhos frente à total falta de provas
técnicas de minha culpabilidade referente aos quatro homicídios a mim
atribuídos; não reconhecem a revelia do meu julgamento; a prescrição e quem
sabem qual outro impedimento à extradição.
Além de tudo, é surpreendente e absurdo, que a Itália tenha me condenado por
ativismo político e no Brasil alguns poucos teimam em me extraditar com base
em envolvimento em crime comum. É um absurdo, principalmente por ter
recebido do Governo Brasileiro a condição de refugiado, decisão à qual serei
eternamente grato.
E frente ao fato das enormes dificuldades de ganhar essa batalha contra o
poderoso governo italiano, o qual usou de todos os argumentos, ferramentas e
armas, não me resta outra alternativa a não ser desde agora entrar em “GREVE
DE FOME TOTAL”, com o objetivo de que me sejam concedidos os direitos
estabelecidos no estatuto do refugiado e preso político. Espero com isso
impedir, num último ato de desespero, esta extradição, que para mim equivale
a uma pena de morte.
*Sempre lutei pela vida*, mas se é para morrer, eu estou pronto, mas, nunca
pela mão dos meus carrascos. Aqui neste país, no Brasil, continuarei minha
luta até o fim, e, embora cansado, jamais vou desistir de lutar pela
verdade. A verdade que alguns insistem em não querer ver, e este é o pior
dos cegos, aquele que não quer ver.
Findo esta carta, agradecendo aos companheiros que desde o início da minha
luta jamais me abandonaram e da mesma forma agradeço àqueles que chegaram de
última hora, mas, que têm a mesma importância daqueles que estão ao meu lado
desde o princípio de tudo. A vocês os meus sinceros agradecimentos. E como
última sugestão eu recomendo que vocês continuem lutando pelos seus ideais,
pelas suas convicções. Vale a pena!
Espero que o legado daqueles que tombaram no front da batalha não fique em
vão. Podemos até perder uma batalha, mas tenho convicção de que a vitória
nesta guerra está reservada aos que lutam pela generosa causa da justiça e
da liberdade.
P.S - Como última sugestão eu recomendo que vocês continuem lutando pelos seus
ideais, pelas suas convicções. Vale a pena!*
*Por Cesare Battisti*
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
New kids on the blog!!!
Um novo blog surge na rede. Trata-se de Covil da Intriga, o espaço para execrar as ervas daninhas que polulam nas mídias desse país.
Leiam o editorial:
Saudações, leitores!
Hoje estava eu vindo da faculdade em um ônibus refrigerado doido de vontade de mijar. Saltei do dito cujo e corri para o primeiro banheiro que pude entrar. Como tudo hoje é difícil, até encontrar um banheiro de botequim para tira água do joelho, tive que correr até o supermercado do bairro e dar aquela aliviada no banheiro do estabelecimento que, diga-se de passagem, não perde em nada para os mictórios dos pés sujos mais movimentados.
Bem, depois de aliviar a bexiga e sacudir o bilau (e lavar a mão, é claro), saí do banheiro e já estava me dirigindo para o meu doce lar quando vi os meus amigos A.E e M.I no caixa do supermercado.
Foi aquela alegria, digna de comemoração!
Fomos ao primeiro cospe-grosso que encontramos e pedimos uma gelada.
Papo vai, papo vem...
Malhamos Deus e o mundo!
Começamos pela mocréia da Uniban que virou celebridade, passamos pelo mala do Caetano Veloso, execramos a Rede Globo, a Globo Filmes, e os demais judas de plantão.
Nisso tivemos a idéia - aliás quem teve foram os meus dois amigos! - de construir um blog onde pudéssemos compartilhar com vocês todas as nossas opniões sobre a canalhice que impera no país. Prometemos não deixar pedra sobre pedra!
Então, se divirtam ou se irritem, fiquem à vontade.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Caetano Veloso, o mala-mor da MPB - parte I
Diante das últimas asneiras vomitadas por esse deprorável senhor, reproduzo aqui as ótimas postagens publicadas no blog "Abobrinhas Psicolélicas"
Eis aqui a verdadeira tradução do Caetano Boboso...
Não se discute que Caetano Veloso tem o seu nome profundamente marcado na história da Música Popular Brasileira. Na verdade, não é exagero dizer que isto já ocorre desde o final da década de 1960, quando Caetano – juntamente com Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Torquato Neto e vários outros – esteve à frente de um movimento artístico que teve importância crucial para a nossa cultura: o Tropicalismo. Além disto, nas décadas de 1970 e 1980, ele compôs algumas grandes canções como “Cajuína”, “Muito Romântico”, “O Quereres”, “Língua”, “Como dois e dois” e várias outras que marcaram uma geração. Porém, por conta disto, muita gente alçou Caetano à condição de gênio inquestionável, quase um semideus, e qualquer crítica à sua obra e mesmo à posições pessoais suas - que nada têm a ver com música - passa a ser vista como uma espécie de heresia. Tal postura – que é compartilhada por boa parte dos jornalistas e críticos da grande imprensa – se mostrou bastante clara para mim quando há alguns dias atrás, após ter colocado neste blog uma postagem sobre o que eu chamava de “Música Chata Brasileira”, recebi vários comentários – tanto no próprio post, quanto por e-mail – cujo teor, no geral, era mais ou o menos seguinte: “Quem você acha que é para criticar o Caetano?”. Por conta disto – e também porque desde os primórdios deste blog coloquei em meu perfil que acho esse baiano um chato -, resolvi expor as razões pelas quais não consigo mais ter muita paciência para aturar o Caetano (por questões musicais e extra-musicais). Como os argumentos são muitos, vou dividir este texto em duas postagens para facilitar a leitura.
Sendo assim, vamos aos argumentos:
1-Do ponto de vista musical e poético, desde a década de 1990, a obra de Caetano só pode ser considerada mediana. Apesar de ter produzido algumas boas canções como “Fora de Ordem” e “Haiti”, grande parte do que ele compôs a partir desta época pode ser classificado como fraco ou razoável. Não é a toa que algumas das melhores coisas que ele gravou neste período são regravações de canções de outros compositores ou mesmo de antigas músicas suas (como é o caso de “Como dois e dois”). Na verdade, se analisarmos com mais cuidado, podemos notar que, já na década de 1980, ao lado de grandes composições como “Podres Poderes” e as já citadas “Língua” e “O Quereres”, Caetano andou cometendo coisas como “Comeu” ou “Eclipse Oculto”...
2-Caetano insiste o tempo todo em querer ser “moderno” e “antenado”, procurando passar a idéia de que está sempre na vanguarda e atento a novas tendências. Para mim, isto se aplica à sua obra do final da década de 1960, quando com os demais tropicalistas incorporou à música brasileira elementos da cultura pop internacional, ao mesmo tempo em que reconhecia o valor da produção musical da Jovem Guarda e de compositores considerados kitsch, que estavam fora do mainstream da MPB. Porém, a partir de então, parece-me que ele criou um personagem que acaba sendo um pastiche do que ele representou na época do tropicalismo, um pálido clone de si mesmo. Agora, ao buscar ser moderno ele parece se mover muito mais por um fascínio em estar na mídia – e na moda – e por questões mercadológicas, do que por preocupações estéticas autênticas. Neste sentido, ele busca aparecer como um artista de vanguarda e popular ao mesmo tempo, ao gravar canções de compositores considerados bregas, ao fazer shows como os que ele fazia com a banda Black Rio, no final da década de 1970, ou ao elogiar e cantar em suas apresentações alguns hits do Funk carioca, como faz atualmente. Dentro da mesma lógica, inserem-se as suas constantes aparições na revista "Caras", o sonho de consumo das celebridades vazias;
3-O personagem Caetano considera-se uma espécie de “gênio da raça”, um intelectual que entende de tudo e que pode opinar sobre todos os assuntos. Esta auto-imagem é corroborada por inúmeros de seus admiradores que não cansam de incensá-lo e de aplaudir tudo o que ele faz e diz. Dentre estes, não podemos esquecer o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (outro detentor de um grande ego) que, ao comparar Caetano e Chico, chamou o ex-tropicalista de “gênio”, classificando Chico como “elitista” e “ultrapassado” (será que isto aconteceu porque Chico era um crítico de seu governo, enquanto Caetano o elogiava?). Por conta disto, Caetano dirige um filme soporífero como “Cinema Falado” (1986) - e nenhum crítico tem a coragem de dizer claramente que aquilo é cinema da pior qualidade - ou dá declarações como as que ele deu ao jornal português “Expresso” há alguns anos atrás, em que afirma textualmente que “a colonização portuguesa do Brasil foi a pior coisa que você pode imaginar. Foi o oposto dos EUA, para onde alguns ingleses foram para criar um país melhor”. Afirmando isto, o “gênio” baiano reproduz o mais rasteiro senso comum, esquecendo toda a produção historiográfica brasileira sobre o tema - desde pelo menos Caio Prado Júnior, há mais de sete décadas –, que nos mostra que a questão essencial não é “quem” colonizou, mas sim “como” e “por que” se colonizou.
Caetano Veloso, o mala-mor da MPB - parte II
1- Como se pode notar, por tudo o que descrevi no post anterior, a vaidade de Caetano é tão grande que não lhe permite aceitar críticas: aqueles que não o compreendem são tachados de “caretas”, “medíocres”, “conservadores” ou “elitistas”. Um exemplo claro disto foi o que aconteceu no final da década de 1970, quando, em uma entrevista que deu ao “Diário de São Paulo, Caetano respondeu de forma extremamente violenta a alguns críticos musicais que lhe cobravam um maior engajamento e um posicionamento político mais claro, depois de ele dar algumas declarações de que “não sabia nada do que se passava no Brasil e no mundo”. Citando nominalmente José Ramos Tinhorão, Maria Helena Dutra, Tárik de Souza e Maurício Kubrusly, ele dizia que os cadernos de cultura dos jornais e revistas brasileiros eram dominados por uma esquerda medíocre e repressora que obedecia a dois senhores: o dono da empresa e o chefe do partido. Tal entrevista levou o cartunista Henfil a escrever uma dura crítica a Caetano chamando-o de covarde e dedo-duro por denunciar seus críticos como membros do Partido Comunista, em um país onde ser comunista dava cadeia, torturas e até a morte. Mais recentemente, na entrevista citada no post anterior e publicada no jornal “Expresso”, de Lisboa, Caetano respondeu às criticas recebidas por ter sido matéria de capa da revista “Caras” da seguinte forma: “Pode-se gostar ou não, mas acho pior, sendo realmente uma celebridade, fingir que não o sou, que sou chique. Há uma altura em que não se pode aparecer na Caras para se poder ficar numa área superior, como se se pertencesse a uma elite de bom gosto que não se mistura com a vulgaridade dos novos-ricos (...) Por isso, sou a favor do capitalismo, da vulgaridade, sou contra Adorno, que é igual à direita, que quer restaurar a aura das grandes famílias, das grandes posições de responsabilidade cultural detidas por um grupo fechado e excelente” . Não é preciso dizer que todos esses pitis foram dados com grande cobertura midiática...
2- O culto à figura de Caetano é tão forte que se construiu uma memória coletiva sobre ele que é pontilhada por inúmeros esquecimentos. A sua imagem pública é a de uma figura progressista, que foi perseguida pelo regime militar, que possui posições políticas identificadas com uma esquerda “moderna” e que sempre levantou bandeiras de vanguarda. Desta forma, há a lembrança do Caetano exilado em Londres por conta da ditadura, mas esquece-se daquele que - como citei há pouco - dizia, ainda durante os anos de chumbo, que não queria saber de política e que acusava seus críticos de “comunistas”; esquece-se do Caetano que, logo após a eleição de Fernando Collor, declarou ter grandes simpatias pelo novo presidente e por seu discurso “modernizador” ou daquele que, reiteradas vezes, declarou todo o seu apreço por Antonio Carlos Magalhães. Isto sem falar, em tempos mais recentes, do Caetano que foi alçado pelo PhDeus Fernando Henrique Cardoso – de quem se declara um grande admirador – à condição de um dos maiores intelectuais do país. No entanto, insistir em lembrar estes episódios pode fazer com que aquele que tenha esta ousadia receba a pecha de estar agindo como um “patrulheiro ideológico” ou a acusação de não ter a sensibilidade necessária para compreender as inquietações de um artista em permanente mutação (ou seria uma “obra em progresso”?).
E por estas e (muitas) outras que não tenho mais paciência para Caê e suas egotrips. E, para finalizar, não posso deixar de reproduzir as palavras do historiador português Romero Magalhães que, ao ser indagado sobre os já citados comentários do gênio de Santo Amaro da Purificação a respeito da colonização portuguesa no Brasil, respondeu: “Ele se deixou embarcar em qualquer coisa que passou à frente. Além do mais, eu prefiro o Caetano a cantar do que a falar sobre coisas de que não sabe”.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
20 anos da Queda do Muro - uma análise sóbria
Para não ficarmos só com a opnião nada isenta do jornalismo da Globo, Folha de São Paulo, Veja e afins (o chamado P.I.G), vejamos a brilhante análise dessa data histórica.
No vigésimo aniversário de 1989 os ideólogos, políticos e a mídia do
capitalismo mundial desejam reforçar na consciência popular que os
eventos daquele tumultuoso ano significam apenas uma coisa: a “derrota
final” do marxismo, do “comunismo” e do próprio socialismo, enterrados
para sempre sob o entulho do Muro de Berlim. Eles também significam a
vitória final do capitalismo, que “encerrou a história” de acordo com
Francis Fukuyama, e estabeleceram esse sistema como o único modelo
possível de organização da produção e gestão da sociedade.
Um paradigma econômico, que aboliria até mesmo os ciclos de
crescimento e queda do capitalismo, estabelecera uma escada dourada que
levaria a uma existência cada vez mais humana, justa e civilizada. A
crise econômica da primeira metade dessa década, acompanhada pelas
guerras do Iraque e Afeganistão, afetou severamente esse prognóstico. A
atual e devastadora “grande recessão” o desacreditou totalmente. Além
disso, foi o marxismo – como os membros e apoiadores do Partido
Socialista e de seu jornal – que previu isso. Mas nós deveríamos ter
sido relegados às margens, destinados a nunca mais exercermos qualquer
influência.
O resultado dos momentosos eventos de 1989 foi de fato uma
‘revolução’, mas uma contra-revolução social, que resultou no final na
liquidação do que restava das economias planejadas da Rússia e Leste
Europeu. Mas esse movimento, que varreu um país a outro, não começou
com esse objetivo, especialmente por parte das massas. Nem os
capitalistas – através de seus representantes como a primeira-ministra
britânica Margaret Thatcher e o presidente francês François Mitterrand
– esperavam ou, no início, saudaram de todo o coração os movimentos de
massas que acompanharam o colapso dos regimes stalinistas.
O brutal órgão do capital financeiro americano, o Wall Street
Journal, comentando a competição entre o capitalismo e os regimes
“comunistas” do Leste Europeu, declarou simplesmente no início de 1990:
“Nós ganhamos”. Um não menos exultante Independent (8 de janeiro de
1990) falava da “confiança de que – como sistema – o capitalismo é um
vencedor”. A impressão dada desde então é que os adivinhos olímpicos do
capitalismo previram os eventos de 1989. Mas o Financial Times – o
porta-voz do capital financeiro na época e agora – escreveu: “A
Alemanha Oriental ainda não possui nenhum movimento de massas no
horizonte, a liderança da Tchecoslováquia não pode permitir o
questionamento da fonte de sua legitimidade na invasão soviética de
1968, a Hungria enfrenta dissidentes, mas ainda não é um proletariado
em ascensão. A Bulgária introduzirá reformas ao estilo soviético, mas
sem o caos ou a democracia imatura soviética, a Romênia e a Albânia
estão encerradas em aço”. Isso foi escrito por John Lloyd, que antes
era do New Statesman, não três décadas antes, mas em 14 de outubro de
1989, menos de um mês antes do colapso do Muro de Berlim!
Entendendo o stalinismo
Mitigando esse “lapso” nas “perspectivas”, o finado Hugo Young
escreveu no jornal The Guardian (29 de dezembro de 1989) que “ninguém
jamais previu” os momentosos eventos daquele ano. Isso não é verdade.
Foi precisamente o teórico marxista Leon Trotsky, com seus métodos
“antediluvianos”, que mais de meio século atrás previu a inevitável
revolta da classe trabalhadora contra o stalinismo (naquela época
confinado à “União Soviética”). Ele previu um movimento de massas para
derrubar os usurpadores burocráticos que controlavam o estado e uma
revolução política para estabelecer a democracia dos trabalhadores. Mas
ele também escreveu nos anos 1930, em sua obra monumental, A Revolução
Traída, que uma ala da burocracia poderia presidir um retorno ao
capitalismo.
Essa idéia não foi tirada da cabeça de Trotsky mas se baseou em uma
meticulosa análise das contradições do desgoverno stalinista e das
forças que ele inevitavelmente iria conjurar. Karl Marx pontuou que a
chave para a História era o desenvolvimento das forças produtivas –
ciência, técnica e a organização do trabalho. Ele também disse que
nenhum sistema desaparece sem esgotar todas as possibilidades latentes
dentro dele. O capitalismo, um sistema econômico baseado na produção
pelo lucro – o trabalho não pago da classe trabalhadora – como sua
razão de ser, ao invés da necessidade social, enfrenta um ciclo de
crescimento e queda, que até Gordon Brown agora é forçado a reconhecer.
Mas, como Trotsky analisou, o stalinismo – por razões diferentes do
capitalismo – ao exercer uma camisa de força burocrática, se tornaria
um freio absoluto ao desenvolvimento econômico da sociedade em uma
certa etapa.
No período que vai provavelmente até o fim dos anos 1970, apesar das
monstruosidades de Stalin e do regime que ele presidiu – os processos
de expurgo, o trabalho escravo dos gulags – a indústria e a sociedade
se desenvolveram. Nesta etapa, apesar dos custos colossais do
desgoverno burocrático, o stalinismo jogou um papel relativamente
progressista. Há algumas analogias com o capitalismo em sua ascensão no
século 19 até 1914, quando ele se tornou uma barreira ao progresso,
como mostraram os horrores da primeira guerra mundial. Face à
estagnação, regressão e até desintegração, que é o que ocorreu nos
estados stalinistas – especialmente na Rússia a partir do final dos
anos 1970 – os regimes foram de um expediente a outro. Eles se moveram
da centralização à descentralização, e depois para a recentralização,
em vãs tentativas de escapar do beco sem saída burocrático.
Os métodos do governo burocrático, do comandismo, poderiam ter algum
efeito quando a tarefa na Rússia era copiar as técnicas industriais do
Ocidente, desenvolver uma infraestrutura industrial etc., e quando o
nível cultural da massa da classe trabalhadora e do campesinato ainda
era baixo. Mas nos anos 1970 a Rússia se tornou altamente
industrializada e, mesmo que algumas afirmações de sucesso fossem
exageradas, um rival industrial dos EUA. Em uma etapa, ela produziu
mais cientistas e técnicos do que até mesmo os EUA. Mas a própria
criação de uma força de trabalho culturalmente mais avançada –
altamente educada em alguns sentidos – fez com que o governo da cúpula
entrasse em colisão com as necessidades da industria e da sociedade. Os
preços para milhões de mercadorias, por exemplo, eram fixados
burocraticamente nos ministérios centrais em Moscou, enquanto o regime
se tornava cada vez mais um obstáculo. O descontentamento das massas
cresceu e se refletiu não apenas nas tentativas de revolução política
na Hungria em 1956, Polônia, Tchecoslováquia em 1968 etc., mas também
na Rússia. As greves de 1962 em Novocherkassk, por exemplo, mostraram o
perigo que ameaçava a continuidade do governo da burocracia.
Levantando a tampa
Foi essa situação que Mikhail Gorbachev, que chegou ao poder na
União Soviética representando uma ala mais ‘liberal’ da burocracia,
empenhou-se em mitigar através da perestroika (reestruturando a
política e a economia) e da glasnost (abertura). Nos relatos históricos
subsequentes, Gorbachev tornou-se a figura que presidiu o retorno ao
capitalismo na Rússia e a liquidação da antiga URSS. Contudo, ele não
começou com essa intenção. Como todas as classes ou elites dominantes,
e na tradição dos antigos dirigentes burocráticos, de Stalin em diante,
sentindo os murmúrios e descontentamento em massa vindos de baixo,
Gorbachev tentou desesperadamente introduzir reformas como um meio de
impedir a revolução. Inevitavelmente, uma minúscula abertura da panela
de pressão produz o resultado da revolta em massas que ela pretendia
evitar.
Ao comentar 1989, os representantes capitalistas abandonaram sua
hesitação usual de até mesmo proferir a palavra “revolução”. Isso
contrasta com sua descrição – repetida ad nauseam, especialmente na
recente biografia de Trotsky por Robert Service – da Revolução de
Outubro na Rússia de 1917 como um “golpe”. Ao descrever 1989 como uma
revolução, eles estão pelo menos meio corretos. Houve o início de uma
revolução – para ser mais preciso, elementos de uma revolução política
– na Alemanha Oriental, Romênia, Tchecoslováquia, China com os eventos
da Praça Tiananmen (Praça da Paz Celestial), e mesmo na própria Rússia,
embora com um movimento de massas que não alcançou as mesmas alturas.
Em todos esses países houve inicialmente uma inquestionável expressão
por reformas democráticas dentro do sistema, uma aceitação implícita da
continuidade da economia planificada. Esse movimento varreu os países
com uma tremenda velocidade, como fogo na pradaria. Um cartaz em Praga
na época dizia: “Polônia – 10 anos. Hungria – 10 meses. Alemanha
Oriental – 10 semanas. Tchecoslováquia – 10 dias. Romênia! 10 horas”.
Além disso, os métodos usados para derrubar os regimes stalinistas
foram manifestações em massa e greves gerais – não os métodos usuais da
contra-revolução burguesa – com demandas que tinham como objetivo
reduzir ou abolir os privilégios da burocracia. Em uma das muitas
reportagens do Militant (predecessor do The Socialist) antes do colapso
do regime stalinista na Alemanha Oriental, a demanda por democracia era
evidente. Em 24 de outubro, nós reportamos: “Alguns milhares de jovens
marchavam pelas ruas. Eles foram bloqueados por fileiras policiais, com
os braços entrelaçados. Os jovens marcharam até eles e começaram a
cantar: ‘Vocês são a polícia do povo. Nós somos o povo. Quem vocês
estão protegendo?’ Eles cantaram a Internacional e então começaram uma
canção das lutas contra o fascismo chamada ‘A Frente Unida dos
Trabalhadores’. Suas palavras tiveram um particular efeito sobre a
polícia: ‘Vocês também pertencem à frente unida dos trabalhadores, pois
vocês também são trabalhadores’. A polícia simplesmente ficou parada e
foi varrida de lado enquanto os jovens iam adiante. Nos bares, tropas
de soldados discutiam abertamente com os trabalhadores e jovens. Um
grupo discutia a perspectiva do regimento receber ordens de atirar nos
manifestantes. Um conscrito exclamou: ‘Eles podem ordenar, mas nós
nunca atiraremos no povo. Se eles fizerem isso vamos voltar as armas
contra os oficiais’.”
Na Rússia apareceram cartazes: ‘Não o povo para o socialismo, mas o
socialismo para o povo; abaixo os privilégios especiais para políticos
e burocratas, os servos do povo devem ter de ficar nas filas”. Nesta
etapa, uma pesquisa de opinião na Rússia mostrou que apenas 3% votariam
em um partido capitalista nas eleições multipartidárias. Os
representantes sérios do capitalismo temiam que as demandas por uma
revolução política tomariam precedência sobre o sentimento
pro-capitalista que sem dúvida existia em algumas camadas. Um, talvez
dois milhões de trabalhadores estavam nas ruas de Beijing, com meio
milhão saudando Gorbachev em maio. Depois da sangrenta supressão da
Tiananmen, o antigo primeiro-ministro conservador britânico Edward
Heath apareceu na TV ao lado de Henry Kissinger, o notório braço
direito do presidente Nixon nos bombardeios do Vietnã e do Camboja.
Heath declarou: “Os estudantes e trabalhadores chineses não estavam
atrás do tipo de democracia que defendemos... eles estavam cantando a
Internacional”. Kissinger queixou-se de era “uma pena” que o movimento
de massas tivesse manchado o fim da carreira do líder chinês Deng
Xiao-Ping.
Para o registro, ambos se opunham ao derramamento de sangue. Mas
mais importante para eles era a manutenção das relações comerciais com
a burocracia chinesa. De forma nauseante, o deputado trabalhista de
direita Gerald Kaufman – famoso recentemente pelo seu envolvimento nos
escândalos das despesas indevidas de deputados – então porta-voz
trabalhista de assuntos internacionais, declarou: “Pode-se entender que
o governo chinês quisesse retomar o controle da praça, embora ele tenha
ido exageradamente longe demais para isso”.
Alarme no Ocidente
Thatcher também expressou alarme com os eventos no Leste Europeu,
especialmente com a perspectiva da reunificação alemã após o colapso do
Muro de Berlim. Documentos recentemente contrabandeados da Rússia e
publicados no The Times em setembro mencionam que Thatcher “dois meses
antes da queda do muro… disse ao presidente Gorbachev que nem a
Grã-Bretanha nem a Europa Ocidental queriam a reunificação da Alemanha
e deixou claro que ela queria que o líder soviético fizesse o que
pudesse para detê-la”. Ela declarou: “Não queremos uma Alemanha unida…
Isso levaria a uma mudança nas fronteiras do pós-guerra, e não podemos
permitir isso porque tal acontecimento minaria a estabilidade de toda a
situação internacional e colocaria em risco nossa segurança”.
Em uma reunião com Gorbachev ela insistiu que a gravação fosse
desligada. Infelizmente para ela, foram feitas notas de seus
comentários. Ele não se importava com o que estava acontecendo na
Polônia, onde o Partido Comunista foi derrotado na primeira eleição
aberta no Leste Europeu desde a tomada stalinista, “apenas algumas das
mudanças na Europa Oriental”. Incrivelmente, especialmente com as
subsequentes declarações belicosas do presidente dos EUA George Bush
pai sobre o Pacto de Varsóvia, ela queria que ele “continuasse
existindo”. Ela expressou especialmente sua “profunda preocupação” com
o que acontecia na Alemanha Oriental.
Mitterrand também estava alarmado com a perspectiva da reunificação
alemã e até mesmo considerou uma aliança militar com a Rússia para
“impedi-la”. Ele estava preparado para camuflar isso como “uso conjunto
dos exércitos para combater desastres naturais”, usado, de fato, como
um alerta casa as massas da Alemanha Oriental fossem longe demais. De
um lado, a posição de Thatcher e Mitterrand expressavam o medo de um
capitalismo alemão fortalecido, mas também de que as repercussões
destes eventos pudessem acionar um incontrolável movimento de massas na
Europa Ocidental e outros lugares. Um dos conselheiros de Mitterrand,
Jacques Attali, até mesmo disse que ele “iria viver em Marte se a
unificação [alemã] ocorresse”. Thatcher escreveu em suas memórias: “Se
há um exemplo no qual a política externa que eu conduzi encontrou um
fracasso explícito, foi minha política sobre a reunificação alemã”.
Gorbachev e seu séquito do Kremlin, embora lisonjeados com os
louvores dirigidos a eles por círculos capitalistas ocidentais, estavam
em pânico com o ritmo e a sequência dos eventos na Europa Oriental.
Gorbachev ingenuamente acreditava que com concessões parciais e a
recusa de sustentar os dinossauros stalinistas na Alemanha Oriental
(ele pensava que Erich Honecker, o intransigente autocrata deste país,
era um ‘idiota”), as massas seriam gratas e satisfeitas. Gorbachev não
tinha intenções, no início, de ‘liberalizar’ o stalinismo da
existência. Ele certamente não tinha intenções declaradas de
desencadear o capitalismo. Mas, como o resto dos regimes stalinistas,
ele foi arrastado pelos eventos. Não foram apenas Honecker, os
Ceaucescus na Romênia, as gangues stalinistas dirigentes na Bulgária e
em outros lugares que foram derrubados. Eventualmente, os movimentos no
Leste Europeu – na “periferia” do stalinismo – se espalharam para o
coração russo. O resultado final foi o retorno ao capitalismo na Europa
Oriental e na própria Rússia.
A restauração capitalista era inevitável?
Esse resultado era inevitável? Não há “inevitabilidade” na história
se, quando as condições para a revolução estiverem maduras, o “fator
subjetivo” estiver presente na forma de uma direção e partidos
revolucionários testados e temperados. Isso claramente faltava em todos
os estados stalinistas, especialmente na própria Rússia. Havia uma
repulsa generalizada com o governo desenfreado da burocracia, e também
demandas para reduzir os privilégios e a corrupção em larga escala.
Havia um anseio e uma busca das massas pelo programa da democracia dos
trabalhadores em todos os estados. Além disso, os eventos estavam sendo
feitos nas ruas, nas fábricas e nos locais de trabalho. Anteriormente,
os marxistas esperavam e acreditavam que era possível, logo após uma
revolta em massa, mesmo com um número limitado de quadros marxistas, a
criação de um partido de massas. Então, com a direção necessária, isso
poderia ajudar as massas a implementarem as tarefas da revolução
política: mantendo a economia planificada mas renovando-a com base na
democracia dos trabalhadores. Mas eles trabalhavam em sua maioria no
escuro, sem raízes ou uma presença real nos estados stalinistas. Dado a
presença de “estados fortes” de caráter totalitário no período que
levou direto aos eventos de 1989, um trabalho de massas sério era
problemático.
A situação era um pouco diferente na Polônia, onde pronunciadas
tendências pró-capitalistas estavam evidentes por todos os anos 1980,
especialmente após o fracasso do movimento Solidariedade de 1980-81.
Naquela época, os elementos de uma revolução política existiam até
mesmo no programa do Solidariedade, embora sob a direção de Lech Walesa
ele estivesse sob o signo da religião, da Igreja Católica. Já
coexistindo ao lado desses elementos havia sentimentos
pró-capitalistas. O esmagamento militar do movimento Solidariedade em
1981 foi realizado não pelo Partido “Comunista” Polonês – cuja
autoridade já tinha evaporado completamente – mas pelo regime
militar-bonapartista stalinista do General Jaruzelski. Isso, aliado ao
crescimento econômico do capitalismo dos ano 1980, empurrou para o
último plano a esperança da democracia dos trabalhadores e da
manutenção da economia planificada. O sentimento das massas se voltou
para outras alternativas, especialmente o retorno ao capitalismo,
revelado durante as visitas de Thatcher e Bush à Polônia em 1988. Eles
receberam uma enorme saudação nas ruas de Varsóvia, com as massas,
ingenuamente como foi revelado, esperando melhores resultados, em
termos de maiores padrões de vida, do que os do desacreditado modelo
stalinista desabando ao seu redor.
Esse processo não foi tão pronunciado em outros lugares, certamente
não na Rússia. Lá, a esperança de uma revolução política não se
extinguiu inteiramente entre os marxistas da Rússia e
internacionalmente, mesmo com os eventos na Polônia. Afinal, a revolta
do povo húngaro em 1956 foi acompanhado pela criação de conselhos de
trabalhadores no modelo da Revolução Russa. Isso depois que as massas
foram mantidas na noite escura dos 20 anos do terror fascista de
Horthy, seguidos pelos dez anos do terror stalinista. Não havia uma
tendência dominante pró-retorno ao capitalismo em 1956. O mesmo era
verdade na Polônia no mesmo ano, em 1970 e 1980-81. Em 1968 na
Tchecoslováquia havia forças que defendiam o retorno ao capitalismo,
mas elas estavam em minoria, com a esmagadora maioria das massas
buscando as idéias de democracia dos trabalhadores, resumidas na frase
do primeiro-ministro Alexander Dubcek, “Socialismo com face humana”.
O esmagamento da “Primavera” tchecoslovaca de 1968 – antes que
pudesse florescer no verão de uma revolução política – desferiu um
golpe pesado na perspectiva de uma democracia dos trabalhadores como
uma saída do impasse do stalinismo moribundo. A História não fica
parada; a agonia de morte do stalinismo por mais de uma década,
combinada com os aparentes fogos de artifício econômicos do boom
capitalista mundial dos anos 1980, geraram a ilusão de que o sistema
“do outro lado do muro”, o capitalismo ocidental, oferecia um modelo
melhor para o progresso do que o sistema frustrante da Europa Oriental
e da Rússia.
Por que a resistência limitada?
Uma das questões mais perturbadoras que confrontam os marxistas
desde então foi a pouca resistência aparente entre as massas da
população quando a Rússia tomou passos na direção do capitalismo.
Contudo, uma resposta a esse enigma pode ser encontrada na história do
stalinismo, especialmente nas diferentes fases pelas quais ele passou.
Em particular, os processos de expurgo organizados por Stalin em
1936-38 representaram um ponto de inflexão decisivo. Ao aniquilar os
últimos remanescentes do Partido Bolchevique – destruindo até
capituladores como Zinoviev e Kamenev – Stalin esperava anular a
memória da classe trabalhadora da URSS. Até então, duas gerações ainda
estavam ligadas à Revolução Russa e seus ganhos, na forma da
nacionalização das forças produtivas e de um plano de produção.
Além disso, havia um apoio generalizado entre as camadas
desenvolvidas da classe trabalhadora internacional para as vantagens e
principais conquistas da Revolução Russa. Isso apesar do fato de que,
já na Rússia nos anos 1930, como Trotsky pontuou, havia uma crítica
generalizada do regime burocrático presidido por Stalin. O advento da
revolução espanhola também teve um efeito eletrizante na Rússia, ao
gerar esperanças do triunfo da revolução mundial e agitar a memória do
que aconteceu na Rússia duas décadas antes. Stalin, portanto, conduziu
uma “guerra civil unilateral” para destruir os últimos vestígios do
Partido Bolchevique. Mas os expurgos foram muito mais longe do que
isso. Ele também usou a situação – no processo vilificando Trotsky e a
Oposição de Esquerda Internacional como agentes da contra-revolução
estrangeira na URSS – para eliminar na burocracia todas as
reminiscências ligadas à memória da revolução. Não foram apenas os
Oposicionistas de Esquerda que foram assassinados, mas centenas de
milhares de trabalhadores e camponeses, incluindo setores
significativos da burocracia. Por meio desses métodos bárbaros, Stalin
construiu uma máquina burocrática que não estava ligada de nenhuma
maneira com o período heróico da Revolução de Outubro. Pessoas como
Nikita Khrushchev, Yuri Andropov e o outros que dominaram o estado nas
próximas décadas não participaram da clandestinidade bolchevique ou na
revolução de Outubro e, em certo sentido, “não tinham história”,
certamente não a rica história revolucionária da Rússia. Todos os
elementos críticos dentro da classe trabalhadora também foram
eliminados nesta etapa.
Apesar dos monstruosos crimes do stalinismo – incluindo a execução
dos altos comandantes militares do Exército Vermelho, o que facilitou a
invasão de Hitler em 1941 – as vantagens da economia planificada ainda
eram presentes. Além disso, o capitalismo estava assolado por crises,
com o desemprego em massa da grande depressão dos anos 1930. Como
Trotsky pontuou, havia uma oposição de massas ao stalinismo, mas a mão
da classe trabalhadora absteve-se de derrubar o regime por uma
combinação de fatores. Não menor era o medo de que um movimento contra
Stalin e a burocracia abriria as portas para a contra-revolução
capitalista. Ao mesmo tempo, a indústria e a sociedade em termos
bastante gerais – e em certa medida os padrões de vida das massas –
continuavam avançando apesar da burocracia.
A morte de Stalin, contudo, levou às revelações de Khrushchev no 20º
congresso do Partido Comunista da União Soviética e ao chamado
“degelo”. Khrushchev denunciou Stalin e alguns de seus crimes, mas, na
realidade, apenas doses “admissíveis” de algumas verdades foram
permitidas. Mesmo essas verdades parciais misturadas com mentiras não
tocavam nos mitos e falsificações stalinistas. Khrushchev temia ir
longe demais e os líderes stalinistas russos como Leonid Brejnev, que
derrubaram Khrushchev, proibiram quaisquer novas “revelações” reais dos
crimes de Stalin e das causas do próprio stalinismo. Depois, eles até
mesmo aceitaram sua reabilitação parcial. Portanto, à medida que o
sistema começou a se despedaçar, não existia na Rússia nenhuma
alternativa marxista real, sem falar de uma consciência de massas
desenvolvida que apresentasse um programa de democracia dos
trabalhadores.
Teria sido inteiramente possível na época do colapso do stalinismo,
desde o final dos anos 1980, apresentar um quadro claro das razões dos
expurgos, os processos, as causas do stalinismo e a alternativa a esse
sistema desacreditado. Mas, ironicamente, os expurgos e a máquina
repressora dizimaram qualquer “fator subjetivo” que pudesse se
desenvolver e jogar um papel decisivo. Contudo, seria um erro concluir
que não havia elementos na Rússia que buscassem um programa de
democracia dos trabalhadores. Mas estes eram muito fracos para conter a
atração do ocidente capitalista, especialmente para uma nova geração
completamente despreparada, seduzida pela aparente abundância dos bens
de consumo que foram levados a acreditar que estavam lá para quem
quisesse.
Capitalismo gangster
O retorno do capitalismo barrou qualquer tentativa de investigar
honestamente as raízes e razões do stalinismo, na preparação para a
restauração da economia planificada com base na democracia dos
trabalhadores. Os poucos que tentavam eram esmagados por uma onda da
maliciosa propaganda anticomunista dos chamados jornais “democráticos”
a serviço da burguesia emergente. Eles eram o espelho burguês da escola
stalinista de falsificação. O totalitarismo stalinista, diziam, surgiu
do caráter “criminoso” do bolchevismo; a revolução russa foi um “golpe”
etc.
O que se seguiu foi uma orgia de propaganda capitalista que inundou
a Rússia pós-1989, acompanhada pelas promessas do que o então chanceler
alemão Helmut Kohl previu “paisagens florescentes” em um mundo
pós-stalinista. Na estrada do retorno ao capitalismo, as massas nestes
estados eventualmente chegariam aos padrões de vida alemães, se não
americanos. “Passando por Bangladesh”, replicava o pequeno bando de
marxistas na Europa Oriental. No melhor, o que se poderia esperar para
a classe trabalhadora da Rússia e Leste Europeu, dizíamos, era talvez
que ela afundaria nos padrões de vida latino-americanos. Isso, temos
que confessar hoje, era uma perspectiva desesperadamente otimista. A
Rússia experimentou um colapso sem precedentes em suas forças
produtivas que excedia em alcance e profundidade a grande depressão dos
anos 1930.
Entre 1989-98 quase metade (45%) de sua produção foi perdida. Isso
foi acompanhado por uma desintegração sem precedentes em toda a antiga
URSS nos elementos básicos de uma sociedade “civilizada”, com as taxas
de homicídio e crimes dobrando. Em meados dos anos 1990 a taxa de
assassinatos era de mais de 30 por 100.000 pessoas, contra um ou dois
na Europa Ocidental. Apenas dois países na época tinham taxas mais
altas: África do Sul e Colômbia. Mesmo no Brasil e México, com alta
criminalidade, os dados eram 50% mais baixos do que a Rússia. A taxa de
homicídios dos EUA, o mais alto no mundo “desenvolvido”, de 6-7 por
100.000, não era nada em comparação. Em 2000, um terço da população
russa vivia abaixo da linha da pobreza oficialmente definida. A
desigualdade triplicou.
A taxa de homicídios foi um produto e um sintoma do irrefreável
capitalismo gangster. Ex-membros da Liga da Juventude Comunista, como o
proprietário do Chelsea Futebol Clube, Roman Abramovitch, apoderaram-se
da parte lucrativa das antigas empresas estatais – como as do petróleo
– para si mesmos. Um tiroteio ao estilo dos gangsteres de Chicago nos
anos 20 a uma escala nacional ou mesmo continental ocorreu entre os
diferentes grupos sobre a divisão do bolo estatal. A economia russa foi
efetivamente partida ao meio por causa da destruição forjada pelo
retorno ao capitalismo. As rendas reais nos anos 1990 afundaram em 40%.
Em meados do fim dos 1990 mais de 44 milhões das 148 milhões de pessoas
da Rússia viviam na pobreza – definida como menos de 32 dólares por
mês. Três quartos da população viviam com menos de 100 dólares por mês.
Os suicídios dobraram e as mortos por excesso de álcool triplicaram em
meados dos 1990. A mortalidade infantil caiu a níveis de terceiro mundo
enquanto a taxa de natalidade colapsou. Em meros cinco anos de
“reforma”, a expectativa de vida das mulheres caiu em dois anos para
72, e em quatro anos para 58 entre homens. Incrivelmente, para os
homens isso era mais baixo do que há um século antes! Se a taxa de
homicídios tivesse continuado, a população russa teria colapsado em um
milhão por ano, caindo para 123 milhões, um colapso demográfico não
visto desde a segunda guerra mundial, quando a Rússia perdeu de 25 a 30
milhões de pessoas. No fim de 1998 pelo menos dois milhões de crianças
russas estavam órfãs – mais do que em 1945. Apenas 650.000 viviam em
orfanatos, enquanto o resto dessas infelizes crianças não tinham lar!
A nova burguesia, no que foi descrito como um infernal e irrefreável
saqueio, de fato roubou tudo o que podia agarrar. Ela saqueou a riqueza
e os recursos naturais da nação, vendeu o ouro, os diamantes o petróleo
e o gás estatais. Os horrores da revolução industrial – o nascimento do
capitalismo moderno – descrito graficamente no Capital de Marx – não
foram nada comparados com os monstruosos crimes com que a nova
burguesia russa celebrou sua entrada no mundo. Esse inferno na Terra
diminuiu um pouco no fim dos anos 1990 com o crescimento da renda
nacional abastecido principalmente pela exportação de petróleo e gás,
amparado no boom capitalista mundial que agora chegou ao fim.
Politicamente, o caos dos anos 1990 foi substituído pela “ordem” de
Vladimir Putin e Dmitri Medvedev. Mas a Rússia ainda não alcançou, na
produção manufatureira pelo menos, o nível de 1989-90. Essa é um
devastador veredicto ao “renascimento” do capitalismo na Rússia.
Comparada com a criança saudável e robusta da revolução industrial no
nascimento do capitalismo, a Rússia moderna ainda está lutando para
respirar, sem falar de caminhar e correr. As massas de todos os
ex-estados stalinistas carregam um terrível fardo com o retorno do
capitalismo.
Consequências de longo alcance
A classe trabalhadora internacional também pagou um preço pesado. O
colapso desencadeado em 1989 não foi apenas do aparato stalinista mas,
com ele, das economias planificadas, o principal ganho herdado da
própria Revolução Russa. A contra-revolução social que fez a roda da
história voltar atrás nestes estados também mudou decisivamente as
relações mundiais por um período. Sozinho entre os marxistas, o Comitê
por uma Internacional dos Trabalhadores (CIT) reconheceu o que esse
reverso representava. Foi uma derrota histórica para a classe
trabalhadora. Antes disso um modelo alternativo para a gestão da
economia – apesar das monstruosas distorções do stalinismo – existia na
Rússia, Leste Europeu e, em certo sentido, também a China. Isso agora
era eliminado. Fidel Castro comparou o fim destes estados como
equivalente ao ‘sol sendo apagado’. Para os marxistas, essas sociedades
não representavam o sol. Mas elas, pelo menos em sua forma econômica,
representavam uma alternativa que, com base na democracia dos
trabalhadores, poderia levar a sociedade adiante.
Embora reconhecendo o que tinha ocorrido, também mostramos que essa
derrota não era da escala dos anos 1930, quando Hitler, Mussolini e
Franco esmagaram as organizações dos trabalhadores, lançando assim as
bases para a catástrofe da 2ª Guerra Mundial. A derrota do fim dos anos
1980 foi mais de caráter ideológico que permitiu aos ideólogos
capitalistas ridicularizar qualquer projeto socialista futuro.
Entretanto, embora o colapso do stalinismo fosse em grande parte um
golpe ideológico na classe trabalhadora internacional, ele também teve
sérias repercussões materiais. Isso levou ao completo colapso político
dos líderes das organizações de trabalhadores, que abandonaram o
socialismo mesmo como um objetivo histórico, e abraçaram as idéias
capitalistas de uma forma ou outra. Não apenas na Grã-Bretanha, com o
advento do Novo Trabalhismo, mas internacionalmente os antigos partidos
de trabalhadores implodiram em formações capitalistas. Eles apenas
diferiam dos partidos abertamente burgueses da mesma forma que os
partidos capitalistas liberais ‘radicais’ diferiam no passado e ainda
diferem nos EUA, na forma dos Democratas e Republicanos – diferentes
lados da mesma moeda capitalista. Nos sindicatos, as direções em sua
maioria abandonaram qualquer idéia de uma alternativa ao capitalismo.
Eles portanto procuravam se acomodar ao sistema, barganhando entre o
trabalho e o capital, ao invés de oferecer um desafio fundamental.
Se você aceita o capitalismo, você aceita sua lógica, suas leis,
especialmente a busca dos patrões em maximizar a lucro em nome dos
capitalistas em detrimento da classe trabalhadora. Isso vai de mãos
dadas com a “parceria social”. Isso pode levar ao “sindicalismo
empresarial”, que limita qualquer movimento militante da classe
trabalhadora para obter mais do que os patrões supostamente podem dar.
De fato, o desenvolvimento dos líderes sindicais domesticados,
acomodando-se aos limites do sistema, junto com o abandono de qualquer
objetivo histórico do socialismo pelos líderes das organizações dos
trabalhadores, encorajou enormemente a confiança e o poder dos
capitalistas. Isso facilitou – sem qualquer resistência real dos
líderes sindicais – uma massiva disparidade de renda em uma escala não
vista desde antes da primeira guerra mundial. O capitalismo desenfreado
não foi contido pelos líderes sindicais. Pelo contrário, isso deu a
eles pleno alcance para que espremessem impiedosamente a classe
trabalhadora a fim de obterem um maior rendimento – com uma fatia cada
vez menor indo para os salários – tudo no altar de um capitalismo
reanimado.
Teste para a esquerda
Os eventos de 1989 e suas consequências foram testes para os
marxistas e aqueles que afirmavam estarem na posição trotskista. Com a
exceção do CIT, a reação da maioria das organizações marxistas deixou a
desejar, para dizer o mínimo. Os morenistas na América Latina (a Liga
Internacional dos Trabalhadores, LIT) procurou enterrar suas cabeças na
areia, recusando-se a reconhecer que o capitalismo tinha sido
restaurado. Eles apenas mudaram de posição os eventos os acertaram na
cabeça e não era mais possivel negar a realidade. Os “capitalistas de
estado” – a direção da Tendência Socialista Internacional (IST, em
inglês), incluindo o SWP britânico – acreditavam que a Rússia e o Leste
Europeu não eram estados operários deformados, mas capitalismos de
estado. O retorno do capitalismo não foi considerado uma derrota, mas
um “movimento lateral”. Na Alemanha Oriental, o IST apoiou a
reunificação da Alemanha em uma base capitalista. Essa abordagem foi
acompanhada pela desastrosa teoria de que nada tinha mudado
fundamentalmente no mundo e que, portanto, os anos 1990 eram favoráveis
ao marxismo por serem “os anos 1930 em câmera lenta”.
Ao outro lado, os partidários do Secretariado Unificado da Quarta
Internacional também tiraram conclusões pessimistas. Seu principal
teórico, Ernest Mandel, confessou a Tariq Ali pouco antes de morrer que
o “projeto socialista” estava fora da agenda por pelo menos 50 anos!
Todos os que previram o aumento colossal do ciclo de vida do
capitalismo, junto com o enterro do socialismo por gerações, foram
respondidos na teoria com os argumentos e idéias apresentados pelo
genuíno marxismo nas últimas duas décadas. Mas o impacto dos eventos
tem sido a maior resposta aos céticos, especialmente a atual e
devastadora crise mundial do capitalismo. A intervenção econômica dos
governos capitalistas mundialmente conseguiu evitar uma repetição
imediata, talvez apenas temporária, da depressão mundial dos anos 1930.
Ao mesmo tempo, a consciência da classe trabalhadora sobre a gravidade
da situação ainda não alcançou a situação objetiva. Isso restaurou
parcialmente a confiança anteriormente despedaçada dos porta-vozes do
capitalismo mundial, que temiam que levantes em massa desafiando as
próprias bases de seu sistema se desenvolvessem em conseqüência da
crise.
Em geral, o pensamento humano é muito conservador; a consciência da
classe trabalhadora sempre esteve atrás dos eventos. Isso é reforçado
quando a classe trabalhadora não possui organizações de massas que
podem agir como um ponto de referência na luta contra o capitalismo. A
direita, mesmo a extrema-direita, parece ter sido a principal grande
beneficiária política desta crise. Isso não é único ou excepcional na
primeira fase de uma crise econômica. Algo similar também se
desenvolveu em alguns países nos anos 1930, como pontuou recentemente o
comentarista político britânico Seumus Milne no The Guardian. Contudo,
ele foi muito generalizante ao dar a impressão de que isso era a reação
imediata em todos os países. A crise de 1930 também testemunhou uma
radicalização política entre a classe trabalhadora numa extensão muito
maior do que se desenvolveu até agora nesta crise.
É verdade que houve o fortalecimento dos nazistas na Alemanha, como
resultado da crise dos anos 1930. Mas também a revolução espanhola
começou a se desdobrar e as massas entraram em ação, tardia mas
decisivamente na França de 1931 em diante. O fato que estava presente,
embora de forma imperfeita, nos anos 1930 e ainda não está hoje, eram
partidos e organizações comunistas e socialistas de massas da classe
trabalhadora que, formalmente pelo menos, se opunham ao capitalismo.
Mesmo nos EUA durante a crise de 1929-33, embora a classe trabalhadora
estivesse paralisada sindicalmente, setores significativos foram
radicalizados politicamente e mesmo o Partido Comunista, por exemplo,
engordou com novos membros. Isso ainda não aconteceu em uma escala
significativa, em grande parte resultado da ausência de partidos de
massa, ainda que pequenos, da classe trabalhadora, cuja criação
continua sendo uma tarefa urgente para os socialistas, marxistas e do
movimento dos trabalhadores. Contudo, mesmo então, embora as tentativas
de criar tais organizações já tenham sido esboçadas, sem um firme
núcleo marxista que forneça a espinha teórica para essas formações,
muitos destes novos acontecimentos podem tropeçar, alguns abortarem e
até mesmo colapsar. Não obstante, permanece uma tarefa fundamental
criar a base de tais formações no próximo período.
1989 foi um ponto de inflexão em geral e também para o marxismo.
Como a mais otimista mas também a mais realista tendência dentro do
movimento dos trabalhadores, reconhecemos que o que ocorreu foi um
retrocesso significativo para o movimento dos trabalhadores. Mas não
perdemos a cabeça. O colapso do stalinismo não eliminou as contradições
inerentes do capitalismo. É verdade, o sistema recebeu um estímulo,
reforçando o processo de globalização através do fornecimento de mão de
obra barata, como a nova fonte de exploração, até de super-exploração,
do capitalismo. Mas a própria fraqueza do movimento dos trabalhadores
encorajou a confiança, de fato a presunçosa arrogância da classe
dominante, que excedeu a si mesma nas economias bolhas das últimas duas
décadas. O húbris foi seguido pela nemesis desta crise. A paisagem do
capitalismo mundial não é de forma alguma “florescente”, mas está
empestado de milhões de trabalhadores desempregados descartadas e com o
crescimento do exército dos pobres.
A classe trabalhadora está se movendo e respondendo. O marxismo,
relegado pelos ideólogos capitalistas à marginalidade, ao enfrentar
diretamente essa situação demonstrou sua viabilidade neste difícil
período. Mas não é apenas em períodos de derrota que suas vantagens são
mostradas através de uma análise sóbria. Seu programa e políticas,
através do Partido Socialista e do CIT, neste novo período de crescente
mobilização das massas contra o capitalismo, também mostrará sua
validade. 1989 não enterrou o socialismo ou o marxismo. Ele ofuscou
temporariamente a visão da classe trabalhadora, que está agora sendo
esclarecida com a atual crise e a incapacidade deste sistema de
resolver mesmo as exigências básicas da massa dos povos do planeta.
Peter Taaffe, Secretário Geral do Partido Socialista (CIT na Inglaterra &
Gales) - 26 de outubro de 2009
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segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Investigação sobre armas é chave para combate à violência urbana
Publicado em BOCA NO TROMBONE
Para Alba Zaluar, uma das maiores especialistas sobre violência no Brasil, a falta de investigação sobre os atos das policias (militar, civil, federal) e do Exército em todo o país torna o combate a violência pouco efetivo e não ataca o fornecimento de arma para traficantes.
A falta de investigação sobre os atos ilícitos das policias (Militar, Civil, Federal) e do Exército em todo o país torna o combate a violência pouco efetivo e não ataca uma das raízes do problema: o fornecimento de arma para traficantes. A avaliação é da antropóloga Alba Zaluar, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma das maiores especialistas do tema no Brasil.
“Os moradores de favela que entrevistamos sempre informaram que 'são os policiais que trazem as armas'. Ex-traficantes que também entrevistamos disseram que tinham alguns policiais que emprestavam armas em troca de algum pagamento que era feito na divisão do roubo”, conta ela, que participa do 33º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
Segundo ela, as entrevistas mostram que não há preocupação das Forças Armadas e da Polícia Militar em investigar quem leva armas para os traficantes. “Nunca fizeram um investigação séria para desmantelar isso”, aponta. “Imaginar que essa questão vai se resolver colocando um soldado em cada ponto da fronteira é besteira. Fronteira é difícil de controlar.”
O Exército, diz Alba Zaluar, controla todos os registros de armas e munições do país, porém não passa a informação para a polícia. “A Polícia Militar, por sua vez, e os policiais civis, também, podem comprar três armas a cada dois anos. Essas armas acabam sendo vendidas. Você tem um mercado aí que acaba sendo muito movimentado.”
Na avaliação da antropóloga, o fornecimento ilícito de armas é antigo. “Desde 1980, ouço falar de granada, fuzil e revólveres que sempre foram armamentos exclusivos das Forças Armadas. No regime militar, isso já ocorria.”
A antropóloga assinala que, além do controle dos traficantes sobre o território e os moradores das favelas, também há as milícias. “Elas só fazem uma coisa: controlam as armas. Não deixam entrar. Então, tem menos crime, tem menos homicídio. Menos crime de rua, mas eles mesmos são criminosos, exploram, cobram taxas para o negócio mobiliário, vendem gás mais caro, fazem um transporte alternativo que gera um caos na cidade.”
Alba Zaluar acredita que seja possível diminuir a violência nas cidades brasileiras, mas não acabar com o tráfico de drogas. “Não se acabou em lugar nenhum. É preciso fazer com que os traficantes abandonem a corrida armamentista. Deixem de lado a ideia de dominar território.”
Segundo ela, uma eventual descriminalização das drogas, que defende há 20 anos, só pode ser implementada após o desarmamento dos traficantes. “Tem que desarmá-los e depois dissolver a formação desses pequenos exércitos, ganhar essa molecada para fazer outra coisa. Mostrando para eles que há outros modelos”, avalia.
Fonte: Agência Brasil
Confundiram democratização do ensino com banalização do ensino!!!!
É deprimente o caso ocorrido em 22 de outubro com a estudante de turismo de uma universidade vagabunda de São Paulo. Hostilizada pelos colegas por portar um vestidinho de gosto duvidoso, a estudante está ameaçada de ser expulsa. É bastante curioso esse episódio...
Quando pensamos em universitários, vem a nossa cabeça (pelo menos na minha) pessoas inteligentes, descoladas, sem preconceito, enfim, acima da média. Mas parece que não é isto que acontece nas fábricas de diploma que infestam o país.
Nestas instituições reproduz-se todo o tipo de mazela que assola nosso povo. Em vez de formar pensadores, formam-se reprodutores de imbecilidades.
A começar pela própria mocréia que pôs um vestidinho curto e provocante e tentou se isibir com ele (reflexo talvez da "sindrome das mulheres-frutas", ela quis reproduzir essa estética), depois a reação dos alunos (ela não podia fazer isso, afinal não é nenhuma "celebridade").
Essa universidade é de péssima qualidade, seus alunos não sabem nem se expressar! Vejam a declaração da estudante-celebridade: "Eu não vou me ausentar de culpa, eu não deveria por um vestido tão curto". Alguém tem de dizer para ela que é "me isentar de culpa" a expressão correta.
Isso tudo é reflexo da banalização do ensino superior após a abertura para as faculdades particulares fazerem a festa.
A seguir um post publicado em Língua de Trapo:
Perguntem ao ex-Ministro tucano Paulo Renato de Souza, provavelmente foi ele quem autorizou o funcionamento desta merda.
Lambido do Portal Terra, com grifos e comentários do Língua.
Um protesto de entidades em favor dos direitos femininos foi vaiado, aos gritos de "Fora, fora", pelos estudantes da unidade de São Bernardo do Campo da Uniban, na região do Grande ABC Paulista, na noite desta segunda-feira. No dia 22 de outubro, a aluna Geisy Arruda precisou sair da universidade escoltada pela polícia após ser hostilizada e xingada por causa do vestido que usava.
As imagens da confusão foram gravadas por universitários e postadas no site YouTube no mesmo dia. Desde o ocorrido, a estudante não voltou mais à universidade. Na sexta-feira, a Uniban informou que a aluna foi expulsa "em razão do flagrante desrespeito aos princípios éticos da dignidade acadêmica e à moralidade". Mas nesta segunda-feira, a faculdade decidiu revogar a decisão.
Segundo a estudante de Educação Física Juliana Mariano, a maioria dos alunos está contra manifestações a favor de Geisy Arruda. Cerca de 50 pessoas estendendo faixas e cartazes, e algumas em um carro de som fizeram um protesto em desagravo à Geisy com palavras de ordem pró-mulher. Os manifestantes chamam a Uniban de "retrógrada", "machista" e "supermercado de diplomas".
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
Caminhos para se pensar uma História do Trabalho no Brasil
A História do Trabalho no Brasil suscita diversas questões para entendermos as agências dos indivíduos e os caminhos traçados pela historiografia para interpretar e procurar entender o comportamento do indivíduo no mundo do trabalho.
No entanto, a historiografia mais tradicional parece ter deixado escapar temas por não serem considerados relevantes para os autores. Assim, a História do Trabalho no Brasil tem dificuldades em estabelecer relações trabalhistas em economias não-exportadoras, não-fabris ou não-urbanas, por exemplo. Desse modo, com respeito à historiografia do período colonial, novos estudos têm apontado para as relações de trabalho nas propriedades rurais não ligadas diretamente à economia agro-exportadora, mas à economia de subsistência e àquela voltada para o mercado interno; atentando, por exemplo, para o número de escravos empregados nestas economias em comparação com o número empregado na agricultura de plantantion.
Diversos trabalhos historiográficos apontam para a importância do tráfico de escravos na economia, já que a reprodução em cativeiro não era satisfatória para atender às demandas, sendo o emprego da mão-de-obra escrava primordial em todos os setores produtivos e em todos os serviços. Desse modo, o sistema escravista “criou” diversas profissões, tanto nas cidades como no campo.
Embora alguns trabalhos mais tradicionalistas afirmem que os escravos das plantations eram diferentes dos escravos urbanos – aqueles qualificados para assumir funções especializadas dentro do plantel, enquanto estes seriam executores de múltiplas funções, sem uma especialidade específica e, portanto, mais “ecléticos” – concordamos com Kátia Mattoso que “a especialização é determinada segundo as necessidades do mercado ou da boa vontade do senhor”; leia-se “boa vontade” como um tratamento mais justo ou uma remuneração (nos casos de “ganho”) mais compensadora. Assim, a demanda (e a especialização) viria de acordo com a conjuntura e a concorrência.
Os trabalhos cotejados destacam as diversas hierarquias e gradações, tanto econômicas e políticas quanto étnicas e culturais, no mundo do trabalho e nas relações cotidianas entre africanos e crioulos, cativos e libertos. Conrad destaca as diversas categorias e funções criadas e recriadas no sistema escravista e constata que essa diversidade de funções poderia ser executada por qualquer modalidade de trabalhador; cativo ou liberto, africano ou crioulo.
Assim, a presença de escravos no ambiente fabril questiona a tese segundo a qual haveria incompatibilidade entre trabalho escravo e atividade industrial. Kátia Mattoso chama a atenção para o mito de caráter eminentemente “eclético” do escravo da cidade, o qual estaria apto para qualquer “ganho” que não exigisse nenhuma especialidade, enquanto o escravo do campo seria mais especializado por executar funções específicas. Os “cantos” – local de ajuntamento de diversos segmentos profissionais - estudados por João Reis na Bahia, o monopólio de algum tipo de “ganho” por uma determinada etnia – como os carregadores de café no Rio de Janeiro, função quase que exclusivamente exercida por escravos minas - e, ainda, o monopólio do comércio de gêneros alimentícios exercidos pelas africanas quitandeiras põem por terra essa teoria e demonstra o auto grau de especialização, para os padrões da época, dos escravos e libertos ganhadores das cidades.
Desse modo, a historiografia sobre a escravidão pode rever diversas postulações e pensar novas perspectivas para entender o mundo do trabalho no contexto da escravatura.
Os estudos da pós-abolição, no que diz respeito ao mundo do trabalho, dimensionam em excesso o caráter da mudança e da entrada de um novo tipo de trabalhador: o imigrante. A partir de então, segundo esses estudos, a História do Trabalho no Brasil pode ser contada, pois, já temos a figura do operário e da classe trabalhadora. Essa História pode ser avaliada a partir do imaginário sobre o que seria a classe trabalhadora, construído pelos meios acadêmicos.
Outras dimensões estão sendo re-elaboradas pela historiografia. A relação do trabalhador com o Estado, suas percepções políticas, suas interações e conflitos com outros agentes; enfim, as esperanças, expectativas, respostas, reações, estímulos, percepções, vivências – tudo relacionado à experiência política (e cultural) do trabalhador em ralação à sociedade do seu tempo. Assim, diversos estudos têm refletido em torno de conceitos, categorias e instituições como a fábrica, o sindicato, o populismo, o trabalhismo, cultura política, sindicalismo, greve, cidadania, etc.
Novas abordagens, portanto, têm suscitado questionamentos que vão além de preocupações com rupturas nitidamente demarcadas ou determinações que subordinam as ações individuais e coletivas.
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