Os leitores devem estar curiosos a respeito do suposto “trabalho escravo” ao qual fui submetido a pouco tempo atrás. Antes de mais nada, devo esclarecer que o termo “trabalho escravo” foi um tanto exagerado de minha parte. Trabalho escravo hoje em dia é sinônimo de trabalho forçado não renumerado, mas, historicamente, uma coisa não é necessariamente sinônima da outra. Vejamos: o trabalho compulsório instituído no Brasil por mais de trezentos anos era forçado, sem dúvida, mas nem sempre não renumerado. Havia uma categoria de escravos que ganhavam pelos seus serviços. É claro que nem sempre, aliás, raramente, eles desfrutavam plenamente da remuneração pelo seu trabalho; uma boa parte, ou tudo, ia para o bolso de seus senhores, porém havia possibilidade dos escravos juntarem pecúlio, o qual era empregado para a compra de sua alforria.
Estes tipos de escravos eram conhecidos como “escravos de ganho”. Tratava-se de uma prestação de serviço por parte do cativo no qual ele tinha licença de seu senhor para prestar serviço para outrem em troca de pagamento pelo mesmo. Muitas vezes o dono do escravo alugava seus serviços para um concessionário por um tempo determinado ou permanente. Havia ainda os escravos de “ganho” que vendiam mercadorias diversas (frutas, legumes, quitutes, bugigangas) em bancas estáticas ou de porta em porta, ou saíam oferecendo seus serviços para quem quisesse ou precisasse (pedreiros, carpinteiros, ourives, funileiros). É importante esclarecer que muitas vezes o senhor ou senhora dona do escravo dependia totalmente do “ganho” do seu escravo para sua subsistência (ao contrário da imagem que muitos têm a respeito da escravidão no Brasil, a maioria dos senhores de escravos não eram milionários detentores de centenas de cativos, mas pessoas pobres donos de um ou dois escravos).
Dito isto, vou contar a história de minha experiência como “escravo de ganho” na semana passada. Precisando descolar um “qualquer” para passar o Carnaval, aceitei um serviço num pequeno restaurante. A princípio achei que ia servir as mesas e atender os fregueses no balcão, moleza, pensei. Já na entrevista o senhor, digo, dono me avisou que o serviço era pesado: ao chegar, às 10 horas da manhã, tinha que “soltar” o arroz das panelas; imediatamente após fazer isto, passava para a pia do balcão para começar a lavar a louça durante o almoço (os pratos, talheres e copos tinham que ser repostos enquanto o almoço era servido). Após a correria do almoço, o qual durava de 11 horas da manhã a 14 horas da tarde, deveria deixar o balcão impecavelmente limpo e passar para a cozinha para lavar o que restava da louça e as panelas. Ele me levou até a cozinha e constatei que a mesma era incrivelmente limpa (coisa incomum para um restaurante cujo menu invariavelmente era composto por frituras). Bem, continuou o dono, após lavar as louças e panelas, tinha que limpar o fogão, as paredes, as prateleiras, a dispensa, o chão. Depois, limpar o banheiro e o resto do restaurante.
Bem, até aí morreu Neves. Não há nada demais nesse tipo de serviço. Os trabalhadores das minas, dos garimpos, os cortadores de cana-de-açúcar, os trabalhadores da construção civil e outros tantos sofrem muito mais em suas labutas. O que eu não contava era com o tipo de patrões que ia lidar. Era um casal. Ele ficava na frente do restaurante servindo as mesas e recebendo as contas. Ela, na cozinha atendendo aos pedidos. Eu ficaria na louça na hora do almoço. Só que o movimento era intenso nesta hora e ele não dava conta de atender aos clientes. Assim, ao mesmo tempo em que eu tinha que dar conta da louça, tinha que auxiliá-lo no atendimento. Então, era um tal de parar para servir um refrigerante aqui, fazer um suco ali, pegar um gelo acolá... E tudo isso levando bronca de que eu era muito lerdo!
Um detalhe importante: ela, a senhora, digo, a patroa, sofria de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) em alto grau! Ele a acompanhava (talvez por medo da mulher). Tudo para eles tinha que ser impecável em matéria de ordem e limpeza. O arroz que eu soltava pela manha (ô arroz papa!) não podia ficar um bolinho sequer. Tinha que ir até o fundo da panela e soltar tudo que tivesse agarrado. E tudo a toque de caixa! “Rápido, rápido, ta demorando muito!”, vociferava a bruaca. Na hora do almoço meu sufoco aumentava. Havia três panos (todos impecavelmente limpos): um para a pia, que devia ficar impreterivelmente seca mesmo durante a lavagem, um para eu enxugar as mãos e um terceiro para eu secar os pratos e talheres. Tinha que recolher os pratos que o patrão trazia das mesas e punha em cima do balcão (no segundo dia já tinha que eu mesmo ir recolher os pratos das mesas), retirar o resto da comida raspando o prato na lata de lixo, lavar os pratos, copos e talheres, por para escorrer, secar e entregar de volta para a bruxa que ficava o tempo todo cobrando: “me dê mais pratos, mais pratos!” (ah, tinha pratos grandes e pequenos). Bem, a todo tempo tinha que interromper este ciclo para servir uma ou outra solicitação de suco, refresco, refrigerante ou algo para a cozinha. A cada interrupção tinha que secar as mãos. A esponja que eu lavava os pratos tinha que ser lavada para retirar a gordura e lavar os copos. Não preciso dizer que eu me atrapalhava todo e tudo se acumulava. Os patrões não poupavam reprimendas na frente de todos.
Quando a hora do almoço estava para terminar, os pratos e talheres que sobravam não podiam mais ser lavados na pia da frente. Tinha que ser recolhidos para a cozinha. A pia da frente tinha que ser muito bem limpa para lavar os copos que sobravam (bobagem, pois, na hora do sufoco do almoço os copos eram lavados juntos com os pratos e talheres). Após lavar os copos, passava-se para o balcão (o pano da pia tinha que ser constantemente lavado e torcido). Havia um ritual que tinha que ser seguido à risca. O pano tinha que ser ESFREGADO no balcão, nas laterais, nas paredes, por todos os lugares onde tivesse passado algum resquício de comida. Tudo isso muito rápido e muito bem feito (como nada ficava “bem feito” eu tinha que repetir as tarefas sempre, e, como tinha que repetir, nunca fazia com a rapidez apropriada).
Após esse martírio, começava meu verdadeiro suplício: iniciava a limpeza na cozinha. Primeiramente a louça que sobrava do almoço. Depois os vasilhames de plásticos onde ficavam as carnes guardadas (as que comportavam frango e empanados tinham que ter atenção especial, além de lavados com detergente tinha que ser usado um produto para tirar o cheiro de ovo e de frango) e as panelas. Estas tinham que ser ARIADAS com palha de aço (e tinham que brilhar como novas!). O fogão, as paredes, a fritadeira, as prateleiras tudo muito bem limpo, ora com esponja e detergente, ora com pano e detergente ou pano com outro produto mais forte. Não preciso dizer que o tempo todo ela dizia que eu estava muito lento e que não ia dar tempo de dar conta de tudo! A cada término de tarefa a patroa me lembrava de como deveria guardar e tudo tinha uma ordem e um lugar certo para cada coisa. Ai de mim se eu esquecia uma seqüência ou pusesse alguma coisa fora do lugar. Bem, resumindo, a cozinha era estreitíssima, quente e ela ainda fumava o tempo todo! Tudo que eu fazia tinha que ser perfeitamente executado. Os panos de chão, de prato e toalhas tinham que ficar alvíssimos para o outro dia. Quando eu conseguia terminar tudo do jeito que eles queriam, já era noite.
Ora, eu fui (muito mal) pago por essas tarefas e você pode perguntar: quando essa situação pode ser comparada à escravidão? Na humilhação, na pressão psicológica, na opressão do trabalho. Muitos escravos (acredito que a maioria) deviam ouvir o tempo todo que não passavam de trastes imprestáveis, preguiçosos, incompetentes (eles não me diziam isso explicitamente, mas era como se exprimissem tais adjetivos). Meu vexame era para mim insuportável. Minhas mãos doíam, meus dedos ficaram todos esfolados Pensava como os pobres cativos suportavam uma vida inteira de humilhação e sofrimento e compreendia, mais do que nunca, a reação de alguns ao resistirem a esta existência madrasta simplesmente se vingando de seus algozes. No terceiro dia não suportei e dei um chute nos patrões. Joguei a toalha.
PQP!!! Eu, no mínimo mandaria eles tomarem no CÚ!
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