terça-feira, 31 de março de 2009

No dia em que a liberdade foi-se embora

Por Celso Lungaretti

Eu tinha 13 anos em 31 de março de 1964.

Puxando pela memória, só consigo me lembrar de que, naqueles dias, a TV vendia o golpe de estado em grande estilo, insuflando tal euforia patrioteira que os cordeirinhos faziam fila para atender ao apelo: "Dê ouro para o bem do Brasil!".

Matronas iam orgulhosamente tirar suas alianças e oferecê-las para os novos redentores da Nação, torcendo para que as câmeras as estivessem focalizando naquele momento solene.

Desde muito cedo eu peguei bronca dessas situações em que a multidão se move segundo uma coreografia traçada por alguém acima dela, com cada pessoa esforçando-se para parecer mais sincera no papel representado... de forma tão exagerada que acaba se mostrando, isto sim, artificial e canastrônica.

De paradas de 7 de setembro a procissões, eu não suportava a falsa uniformidade. Gostava de ver cada indivíduo sendo ele mesmo, igual a todos e diferente de todos ao mesmo tempo.

E, na preparação do clima para a quartelada, houvera a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade, com aquelas senhoras embonecadas e aqueles senhores engravatados me parecendo sumamente ridículos.

Aqui cabe uma explicação: duas fortes influências me indispunham contra a marcha da classe média baratinada.

Minha família era kardecista e, quando eu tinha oito, nove anos, me levava num centro espírita cujo orador falava muito bem... e era exacerbadamente anticatólico.

A cada semana recriminava a riqueza e a falta de caridade da Igreja, contrastando-a com a miséria do seu rebanho. Cansava de repetir que Cristo expulsara os vendilhões do tempo, mas estes estavam todos encastelados no Vaticano.

Vai daí que, cabeça feita por esse devoto tardio do cristianismo das catacumbas, eu jamais poderia aplaudir um movimento de católicos opulentos.

E eu devorara a obra infantil de Monteiro Lobato inteira. Com ele aprendera a prezar a simplicidade, desprezando a ostentação e o luxo; a respeitar os sábios e artistas, de preferência aos ganhadores de dinheiro.

Mas, afora essa rejeição, digamos, estética, eu não tinha opinião sobre o golpe.

Escutava meu avô dizendo que, se viesse o comunismo, ele teria de dividir sua casa com uma família de baianos (o termo pejorativo com que os paulistas designavam os excluídos da época, predominantemente nordestinos).

Registrava a informação, que me parecia um tanto fantasiosa, mas não tinha certeza de que o meu avô estivesse errado.

O certo é que os grandes acontecimentos nacionais me interessavam muito pouco, pois pertenciam à realidade ainda distante do mundo adulto.

Na canção em que Caetano descreve sua partida de Santo Amaro da Purificação para tentar a sorte na cidade grande, ele lembrou que "no dia em que eu vim-me embora/ não teve nada de mais", afora um detalhe prosaico: "senti apenas que a mala de couro que eu carregava/ embora estando forrada/ fedia, cheirava mal".

Da mesma forma, o dia que mudou todo meu futuro -- seja o 31 de março festejado pelos tiranos, seja o 1º de abril em que a mentira realmente tomou conta da Nação -- não teve nada de mais.

Gostaria de poder afirmar que percebi, logo naquele momento, estarmos começando a carregar uma fedorenta mala sem alça, da qual não nos livraríamos por 21 longos anos.

Mas, seria abusar da licença poética e eu não minto, nem para tornar mais vistosas as minhas crônicas.

Os mentirosos eram os outros. Os fardados, as embonecadas e os engravatados.

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